ARE 1067392
Decisão: A Turma, por
votação unânime, negou seguimento ao recurso. Prosseguindo no julgamento, por
maioria, concedeu, de ofício, a ordem de habeas
corpus, para restabelecer a sentença de impronúncia em relação aos
imputados José Reginaldo da Silva Cordeiro e Cleiton Cavalcante, nada impedindo,
nos termos do art. 414, parágrafo único, do CPP, que, enquanto não ocorrer a
extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia com relação a
esses recorrentes, tudo nos termos
do voto do Relator, vencidos os Ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia.
Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski. 2ª Turma, 26.3.2019.
uma decisão do julgamento da ARE 1067392, que aconteceu neste
dia 26/03/2019 quanto a impronuncia e um novo entendimento quanto ao in dubio
pro societat, vejamos ( in https://www.aasp.org.br/noticias/2a-turma-restabelece-sentenca-que-rejeitou-submissao-de-acusados-ao-tribunal-do-juri/,
acessado em 28/03/2019 as 17h23)
A Segunda Turma do Supremo Tribunal
Federal (STF) restabeleceu decisão em que o juízo não verificou indícios de
autoria de crime que justificasse o julgamento de dois homens perante o
Tribunal do Júri (a chamada sentença de impronúncia). Por maioria, o colegiado
seguiu o voto do ministro Gilmar Mendes (relator), segundo o qual, havendo
dúvida sobre a preponderância de provas, deve ser aplicado o princípio que
favorece o réu em caso de dúvida (in dubio pro reo), previsto no artigo 5º, inciso LVII,
da Constituição Federal.
Na hipótese dos autos, o
juízo de primeiro grau pronunciou um corréu (decidiu que ele deve ser julgado
pelo júri) e impronunciou os outros dois denunciados em caso que envolveu um
homicídio no Ceará. Diante do depoimento de seis testemunhas presenciais, o
juiz não verificou qualquer indício de autoria atribuído aos dois acusados. O
Ministério Público estadual então recorreu ao Tribunal de Justiça do Estado do
Ceará, que proveu o recurso sob o entendimento de que, nessa fase processual, o
benefício da dúvida deve favorecer a sociedade (in dubio pro societate) e
determinou que ambos fossem submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri.
No Recurso Extraordinário
com Agravo (ARE) 1067392 interposto ao Supremo, a defesa sustentou que, se o
Tribunal estadual reconheceu a existência de dúvida sobre a autoria do crime,
os recorrentes deveriam ter sido impronunciados em respeito ao princípio da
presunção de inocência. Alegou que o TJ-CE valorou depoimentos de testemunhas
não presenciais em detrimento das testemunhas oculares.
Valoração de provas
Em seu voto, o ministro
Gilmar Mendes explicou que, embora não existam critérios de valoração de provas
rigidamente definidos, o juízo sobre os fatos deve ser orientado pela lógica e
pela racionalidade e pode ser controlado em âmbito recursal. Segundo o relator,
o TJ-CE, em lugar de considerar a motivação do juízo de primeiro grau, formada
a partir de relatos de testemunhas presenciais ouvidas em juízo que afastaram a
participação dos acusados na morte, optou por dar maior valor a depoimento de
“ouvi dizer” e a declarações prestadas nas investigações e não reiteradas em
juízo, não submetidas, portanto, ao contraditório. “É inegável que uma
declaração de alguém que não presenciou os fatos, mas somente ouviu o relato de
outra pessoa, tem menor força probatória que outras testemunhas presenciais que
foram ouvidas em juízo”, afirmou.
Para o ministro, o tribunal
local aplicou ao caso “lógica confusa e equivocada ocasionada no suposto
princípio in dubio pro societate, que, além de não encontrar
qualquer amparo constitucional ou legal, desvirtua as premissas racionais de
valoração da prova”.
A submissão de um acusado ao
julgamento pelo Tribunal do Júri, conforme Mendes, pressupõe a existência de
provas consistentes da tese acusatória. Não se convencendo da materialidade do
fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o
juiz, de forma fundamentada, impronunciará o acusado.
Essa medida, segundo o
relator, visa impedir o envio de casos ao júri “sem um lastro probatório mínimo
da acusação, de modo a se limitar o poder punitivo estatal em respeito aos
direitos fundamentais”. Ainda que haja dúvida diante de elementos
incriminatórios e absolutórios, para o ministro, deve ser aplicado o princípio in
dubio pro reo. Por fim, Gilmar Mendes lembrou que a decisão de impronúncia
não impede o oferecimento de nova denúncia, desde que surjam novas provas,
conforme prevê o artigo 414, parágrafo único, do Código de Processo Penal.
Em seu voto, Mendes negou
seguimento ao recurso da defesa pela impossibilidade de revolvimento de provas
em sede de recurso extraordinário, mas concedeu habeas corpus de ofício para,
afastando o acórdão do TJ-CE, restabelecer a sentença de impronúncia. Os
ministros Celso de Mello e Ricardo Lewandowski acompanharam o relator.
Divergência
O ministro Edson Fachin
também negou seguimento ao recurso, mas divergiu quanto à concessão do habeas
de ofício. Para Fachin, o juízo de segundo grau, apesar do estado de dúvida,
considerou haver indícios mínimos de materialidade e autoria. “Trata-se de
reconhecimento de que é o Júri o juízo competente para dirimir essas dúvidas”,
disse. A ministra Cármen Lúcia também votou nesse sentido. Ambos ficaram
vencidos sobre a concessão da ordem.
No voto do Ministro Gilmar Mendes
podemos destaca os seguintes trechos :
Da necessidade de uma
teoria de valoração racional da prova penal
A “reconstrução dos
fatos” passados é um ponto fundamental do processo penal, considerando-se a sua
função de verificar a acusação imputada a partir do lastro probatório produzido
nos autos. Contudo, o momento da valoração na formação da decisão judicial
carece de maior atenção da doutrina e da
jurisprudência. (KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário.
Forense, 2007. p. 6)
Superada a primazia da
teoria da prova tarifada, em que o julgador ficava vinculado a critérios de
valoração abstratamente fixados na lei, houve a consolidação do sistema de
“livre convencimento motivado”, determinando que “a eficácia de cada prova para
a determinação dos fatos seja estabelecida caso a caso, seguindo critérios não
predeterminados, discricionários e flexíveis, baseados essencialmente em
pressupostos racionais”. (TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Trotta,
2011. p. 387, tradução livre)
Contudo, saindo de um
sistema em que os critérios eram totalmente vinculados, passou-se para um
modelo de “livre convencimento”, em que uma pretensa liberdade do julgador
ocasionou total abertura à discricionariedade no juízo de fatos. Segundo
Michele Taruffo, “o uso degenerativo que às vezes se faz desse princípio abre caminho
para a legitimação da arbitrariedade subjetiva do juiz ou, no melhor dos casos,
a uma discricionariedade que não se submete a critérios e pressupostos”
(Ibidem, p. 398, tradução livre).
Diante disso,
fortalece-se a necessidade de uma teoria racionalista da prova, em que, embora
inexistam critérios de valoração rigidamente definidos na lei, o juízo sobre
fatos deva ser orientado por critérios de lógica e racionalidade, podendo ser
controlado em âmbito recursal ordinário. (FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración
racional de la prueba. Marcial Pons, 2007. p. 64)
Para tanto, a valoração
racional da prova impõe-se constitucionalmente, a partir do direito à prova
(art. 5º, LV, CF) e do dever de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX,
CF).
Um pressuposto
fundamental para a adoção de uma teoria racionalista da prova é a definição de
standards probatórios, denominados “modelos de constatação” por Knijnik.
(KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Forense, 2007.
p. 37)
Trata-se de níveis de
convencimento ou de certeza, que determinam o critério para que se autorize e
legitime o proferimento de decisão em determinado sentido. E o ponto central é
que o atendimento a tal standard deve ser controlável intersubjetivamente
Do standard probatório
para a decisão de pronúncia e a
incongruência do in
dubio pro societate
Em seu acórdão, o TJ
consignou que “a decisão vergastada trouxe argumentos plausíveis a absolvição
dos apelados”, mas também afirmou que “ali se admitiu que havia outros
elementos que apontavam para a culpabilidade
dos réus”, reconhecendo assim claramente uma situação de dúvida.
Entretanto, em lugar de
considerar a motivação do juízo de primeiro grau, formada a partir de relatos
de testemunhas presenciais ouvidas em juízo os quais afastaram a participação
dos pacientes nas agressões, o TJ optou por dar maior valor a depoimento de
ouvir-dizer e declarações prestadas na fase investigatória e não reiteradas em
juízo com respeito ao contraditório.
Ou seja, diante de um estado
de dúvida, em que há uma preponderância de provas no sentido da não
participação dos acusados nas agressões e alguns elementos incriminatórios de
menor força probatória, o Tribunal optou por alterar a decisão de primeiro grau
e pronunciar os imputados.
Considerando tal
narrativa, percebe-se a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto
“princípio in dubio pro societate”, que, além de não encontrar qualquer amparo
constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas
racionais de valoração da prova.
Além de desenfocar o
debate e não apresentar base normativa, o in dubio pro societate desvirtua por
completo o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro, esvaziando a
função da decisão de pronúncia.
Diante, disso, afirma-se na doutrina que:
“Ao se delimitar a
análise da legitimidade do in dubio pro societate no espaço atual do direito
brasileiro não há como sustentá-la por duas razões básicas: a primeira se dá
pela absoluta ausência de previsão legal desse brocardo e, ainda, pela ausência
de qualquer princípio ou regra orientadora que lhe confira suporte
político-jurídico de modo a ensejar a sua aplicação; a segunda razão se dá em
face da existência expressa da presunção de inocência no ordenamento
constitucional brasileiro, conferindo, por meio de seu aspecto probatório, todo
o suporte político-jurídico do in dubio pro reo ao atribuir o ônus da prova à
acusação, desonerando o réu dessa incumbência probatória”. (NOGUEIRA, Rafael
Fecury. Pronúncia: valoração da prova e limites à motivação. Dissertação de
Mestrado, Universidade de São Paulo, 2012. p. 215)
Nesse sentido, em
crítica à aceitação de um in dubio pro societate, afirma-se que “não se pode
admitir que juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um
princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente,
pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o
imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário”.
(LOPES JR., Aury. Direito processual penal. Saraiva, 2018. p. 799)
Assim, ressalta-se que
“com a adoção do in dubio pro societate, o Judiciário se distancia de seu papel
de órgão contramajoritário, no contexto democrático e constitucional, perdendo
a posição de guardião último dos direitos fundamentais”. (DIAS, Paulo T. F. A
decisão de pronúncia baseada no in dubio pro societate. EMais, 2018. p. 202)
A questão aqui em
debate, em realidade, deve ser resolvida a partir da teoria da prova no
processo penal, em uma vertente cognitivista, que acarreta critérios racionais
para valoração da prova e standards probatórios a serem atendidos para
legitimação da decisão judicial sobre fatos.
Sem dúvidas, para a
pronúncia, não se exige uma certeza além da dúvida razoável, necessária para a
condenação. Contudo, a submissão de um acusado ao julgamento pelo Tribunal do
Júri pressupõe a existência de um lastro probatório consistente no sentido da
tese acusatória. Ou seja, requer-se um standard probatório um pouco inferior, mas
ainda assim dependente de uma preponderância de provas incriminatórias.
Conforme o art. 414 do
CPP, “não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios
suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará
o acusado”.
Nos termos assentados
pela doutrina: “Não se exige, pois, que haja certeza de autoria. Bastará a existência
de elementos de convicção que permitam ao juiz concluir, com bom grau de
probabilidade, que foi o acusado o autor do delito. Isso não se confunde,
obviamente, com o in dubio pro societate. Não se trata de uma regra de solução
para o caso de dúvida, mas sim de estabelecer requisitos que, do ponto de vista
do convencimento judicial, não se identificam com a certeza, mas com a
probabilidade. Quando a lei exige para uma medida qualquer que existam
‘indícios de autoria’, não é preciso que haja certeza da autoria, mas é
necessário que o juiz esteja convencido de que estes ‘indícios’ estão
presentes. Se houver dúvida quanto à existência dos ‘indícios suficientes de autoria’,
o juiz deve impronunciar o acusado, como consequência inafastável do in dubio pro reo”.
(BADARÓ, 8 Gustavo H.
Ônus da prova no processo penal, RT, 2004. p. 390- 391)
Na doutrina específica,
afirma-se, inclusive, que o standard probatório para a pronúncia deve ser mais
elevado do que a “preponderância de provas”:
“Vislumbrando-se o
espaço existente entre os standards de preponderância da prova e o da prova
além da dúvida razoável, i. e., entre a mera probabilidade e a prova plena, respectivamente,
vê-se que o critério de probabilidade proposta pelo standard da prova clara e
convincente atende ao juízo pretendido com a decisão”. (NOGUEIRA, Rafael
Fecury. Pronúncia: valoração da prova e limites à motivação.Dissertação de
Mestrado, Universidade de São Paulo, 2012. p. 178)
Como visto, neste caso
concreto, conforme reconhecido pelo juízo de primeiro grau e também em
conformidade com os argumentos aportados pelo Tribunal, há uma preponderância
de provas no sentido da não participação dos imputados José Reginaldo e Cleiton
nas agressões que ocasionaram o falecimento da vítima.
Ainda que se considere
os elementos indicados para justificar a pronúncia em segundo grau e se
reconheça um estado de dúvida diante de um lastro probatório que contenha
elementos incriminatórios e absolutórios, igualmente a impronúncia se impõe. Se
houver uma dúvida sobre a preponderância de provas, deve então ser aplicado o
in dubio pro reo, imposto nos termos constitucionais (art. 5º, LVII, CF), convencionais
(art. 8.2, CADH) e legais (arts. 413 e 414, CPP) no ordenamento brasileiro.