Consultor Jurídico

quinta-feira, 28 de março de 2019

STF - IN DUBIO PRO SOCIETAT - IMPRONUNCIA


ARE 1067392 

Decisão: A Turma, por votação unânime, negou seguimento ao recurso. Prosseguindo no julgamento, por maioria, concedeu, de ofício, a ordem de habeas corpus, para restabelecer a sentença de impronúncia em relação aos imputados José Reginaldo da Silva Cordeiro e Cleiton Cavalcante, nada impedindo, nos termos do art. 414, parágrafo único, do CPP, que, enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia com relação a esses recorrentes, tudo nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski. Turma, 26.3.2019.


uma decisão do julgamento da ARE 1067392, que aconteceu neste dia 26/03/2019 quanto a impronuncia e um novo entendimento quanto ao in dubio pro societat, vejamos ( in https://www.aasp.org.br/noticias/2a-turma-restabelece-sentenca-que-rejeitou-submissao-de-acusados-ao-tribunal-do-juri/, acessado em 28/03/2019 as 17h23)

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) restabeleceu decisão em que o juízo não verificou indícios de autoria de crime que justificasse o julgamento de dois homens perante o Tribunal do Júri (a chamada sentença de impronúncia). Por maioria, o colegiado seguiu o voto do ministro Gilmar Mendes (relator), segundo o qual, havendo dúvida sobre a preponderância de provas, deve ser aplicado o princípio que favorece o réu em caso de dúvida (in dubio pro reo), previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.
Na hipótese dos autos, o juízo de primeiro grau pronunciou um corréu (decidiu que ele deve ser julgado pelo júri) e impronunciou os outros dois denunciados em caso que envolveu um homicídio no Ceará. Diante do depoimento de seis testemunhas presenciais, o juiz não verificou qualquer indício de autoria atribuído aos dois acusados. O Ministério Público estadual então recorreu ao Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, que proveu o recurso sob o entendimento de que, nessa fase processual, o benefício da dúvida deve favorecer a sociedade (in dubio pro societate) e determinou que ambos fossem submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri.
No Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1067392 interposto ao Supremo, a defesa sustentou que, se o Tribunal estadual reconheceu a existência de dúvida sobre a autoria do crime, os recorrentes deveriam ter sido impronunciados em respeito ao princípio da presunção de inocência. Alegou que o TJ-CE valorou depoimentos de testemunhas não presenciais em detrimento das testemunhas oculares.
Valoração de provas
Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes explicou que, embora não existam critérios de valoração de provas rigidamente definidos, o juízo sobre os fatos deve ser orientado pela lógica e pela racionalidade e pode ser controlado em âmbito recursal. Segundo o relator, o TJ-CE, em lugar de considerar a motivação do juízo de primeiro grau, formada a partir de relatos de testemunhas presenciais ouvidas em juízo que afastaram a participação dos acusados na morte, optou por dar maior valor a depoimento de “ouvi dizer” e a declarações prestadas nas investigações e não reiteradas em juízo, não submetidas, portanto, ao contraditório. “É inegável que uma declaração de alguém que não presenciou os fatos, mas somente ouviu o relato de outra pessoa, tem menor força probatória que outras testemunhas presenciais que foram ouvidas em juízo”, afirmou.
Para o ministro, o tribunal local aplicou ao caso “lógica confusa e equivocada ocasionada no suposto princípio in dubio pro societate, que, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, desvirtua as premissas racionais de valoração da prova”.
A submissão de um acusado ao julgamento pelo Tribunal do Júri, conforme Mendes, pressupõe a existência de provas consistentes da tese acusatória. Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, de forma fundamentada, impronunciará o acusado.
Essa medida, segundo o relator, visa impedir o envio de casos ao júri “sem um lastro probatório mínimo da acusação, de modo a se limitar o poder punitivo estatal em respeito aos direitos fundamentais”. Ainda que haja dúvida diante de elementos incriminatórios e absolutórios, para o ministro, deve ser aplicado o princípio in dubio pro reo. Por fim, Gilmar Mendes lembrou que a decisão de impronúncia não impede o oferecimento de nova denúncia, desde que surjam novas provas, conforme prevê o artigo 414, parágrafo único, do Código de Processo Penal.
Em seu voto, Mendes negou seguimento ao recurso da defesa pela impossibilidade de revolvimento de provas em sede de recurso extraordinário, mas concedeu habeas corpus de ofício para, afastando o acórdão do TJ-CE, restabelecer a sentença de impronúncia. Os ministros Celso de Mello e Ricardo Lewandowski acompanharam o relator.
Divergência
O ministro Edson Fachin também negou seguimento ao recurso, mas divergiu quanto à concessão do habeas de ofício. Para Fachin, o juízo de segundo grau, apesar do estado de dúvida, considerou haver indícios mínimos de materialidade e autoria. “Trata-se de reconhecimento de que é o Júri o juízo competente para dirimir essas dúvidas”, disse. A ministra Cármen Lúcia também votou nesse sentido. Ambos ficaram vencidos sobre a concessão da ordem.

No voto do Ministro Gilmar Mendes podemos destaca os seguintes trechos :


Da necessidade de uma teoria de valoração racional da prova penal
A “reconstrução dos fatos” passados é um ponto fundamental do processo penal, considerando-se a sua função de verificar a acusação imputada a partir do lastro probatório produzido nos autos. Contudo, o momento da valoração na formação da decisão judicial carece de  maior atenção da doutrina e da jurisprudência. (KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Forense, 2007. p. 6)
Superada a primazia da teoria da prova tarifada, em que o julgador ficava vinculado a critérios de valoração abstratamente fixados na lei, houve a consolidação do sistema de “livre convencimento motivado”, determinando que “a eficácia de cada prova para a determinação dos fatos seja estabelecida caso a caso, seguindo critérios não predeterminados, discricionários e flexíveis, baseados essencialmente em pressupostos racionais”. (TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Trotta, 2011. p. 387, tradução livre)
Contudo, saindo de um sistema em que os critérios eram totalmente vinculados, passou-se para um modelo de “livre convencimento”, em que uma pretensa liberdade do julgador ocasionou total abertura à discricionariedade no juízo de fatos. Segundo Michele Taruffo, “o uso degenerativo que às vezes se faz desse princípio abre caminho para a legitimação da arbitrariedade subjetiva do juiz ou, no melhor dos casos, a uma discricionariedade que não se submete a critérios e pressupostos” (Ibidem, p. 398, tradução livre).
Diante disso, fortalece-se a necessidade de uma teoria racionalista da prova, em que, embora inexistam critérios de valoração rigidamente definidos na lei, o juízo sobre fatos deva ser orientado por critérios de lógica e racionalidade, podendo ser controlado em âmbito recursal ordinário. (FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Marcial Pons, 2007. p. 64)
Para tanto, a valoração racional da prova impõe-se constitucionalmente, a partir do direito à prova (art. 5º, LV, CF) e do dever de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF).
Um pressuposto fundamental para a adoção de uma teoria racionalista da prova é a definição de standards probatórios, denominados “modelos de constatação” por Knijnik. (KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Forense, 2007. p. 37)
Trata-se de níveis de convencimento ou de certeza, que determinam o critério para que se autorize e legitime o proferimento de decisão em determinado sentido. E o ponto central é que o atendimento a tal standard deve ser controlável intersubjetivamente

Do standard probatório para a decisão de pronúncia e a
incongruência do in dubio pro societate
Em seu acórdão, o TJ consignou que “a decisão vergastada trouxe argumentos plausíveis a absolvição dos apelados”, mas também afirmou que “ali se admitiu que havia outros elementos que apontavam para a  culpabilidade dos réus”, reconhecendo assim claramente uma situação de dúvida.
Entretanto, em lugar de considerar a motivação do juízo de primeiro grau, formada a partir de relatos de testemunhas presenciais ouvidas em juízo os quais afastaram a participação dos pacientes nas agressões, o TJ optou por dar maior valor a depoimento de ouvir-dizer e declarações prestadas na fase investigatória e não reiteradas em juízo com respeito ao contraditório.
Ou seja, diante de um estado de dúvida, em que há uma preponderância de provas no sentido da não participação dos acusados nas agressões e alguns elementos incriminatórios de menor força probatória, o Tribunal optou por alterar a decisão de primeiro grau e pronunciar os imputados.
Considerando tal narrativa, percebe-se a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto “princípio in dubio pro societate”, que, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova.
Além de desenfocar o debate e não apresentar base normativa, o in dubio pro societate desvirtua por completo o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro, esvaziando a função da decisão de pronúncia.
Diante,  disso, afirma-se na doutrina que:

“Ao se delimitar a análise da legitimidade do in dubio pro societate no espaço atual do direito brasileiro não há como sustentá-la por duas razões básicas: a primeira se dá pela absoluta ausência de previsão legal desse brocardo e, ainda, pela ausência de qualquer princípio ou regra orientadora que lhe confira suporte político-jurídico de modo a ensejar a sua aplicação; a segunda razão se dá em face da existência expressa da presunção de inocência no ordenamento constitucional brasileiro, conferindo, por meio de seu aspecto probatório, todo o suporte político-jurídico do in dubio pro reo ao atribuir o ônus da prova à acusação, desonerando o réu dessa incumbência probatória”. (NOGUEIRA, Rafael Fecury. Pronúncia: valoração da prova e limites à motivação. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2012. p. 215)
Nesse sentido, em crítica à aceitação de um in dubio pro societate, afirma-se que “não se pode admitir que juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário”. (LOPES JR., Aury. Direito processual penal. Saraiva, 2018. p. 799)
Assim, ressalta-se que “com a adoção do in dubio pro societate, o Judiciário se distancia de seu papel de órgão contramajoritário, no contexto democrático e constitucional, perdendo a posição de guardião último dos direitos fundamentais”. (DIAS, Paulo T. F. A decisão de pronúncia baseada no in dubio pro societate. EMais, 2018. p. 202)
A questão aqui em debate, em realidade, deve ser resolvida a partir da teoria da prova no processo penal, em uma vertente cognitivista, que acarreta critérios racionais para valoração da prova e standards probatórios a serem atendidos para legitimação da decisão judicial sobre fatos.
Sem dúvidas, para a pronúncia, não se exige uma certeza além da dúvida razoável, necessária para a condenação. Contudo, a submissão de um acusado ao julgamento pelo Tribunal do Júri pressupõe a existência de um lastro probatório consistente no sentido da tese acusatória. Ou seja, requer-se um standard probatório um pouco inferior, mas ainda assim dependente de uma preponderância de provas incriminatórias.
Conforme o art. 414 do CPP, “não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado”.
Nos termos assentados pela doutrina: “Não se exige, pois, que haja certeza de autoria. Bastará a existência de elementos de convicção que permitam ao juiz concluir, com bom grau de probabilidade, que foi o acusado o autor do delito. Isso não se confunde, obviamente, com o in dubio pro societate. Não se trata de uma regra de solução para o caso de dúvida, mas sim de estabelecer requisitos que, do ponto de vista do convencimento judicial, não se identificam com a certeza, mas com a probabilidade. Quando a lei exige para uma medida qualquer que existam ‘indícios de autoria’, não é preciso que haja certeza da autoria, mas é necessário que o juiz esteja convencido de que estes ‘indícios’ estão presentes. Se houver dúvida quanto à existência dos ‘indícios suficientes de autoria’, o juiz deve impronunciar o acusado, como  consequência inafastável do in dubio pro reo”. (BADARÓ, 8 Gustavo H. Ônus da prova no processo penal, RT, 2004. p. 390- 391)
Na doutrina específica, afirma-se, inclusive, que o standard probatório para a pronúncia deve ser mais elevado do que a “preponderância de provas”:
“Vislumbrando-se o espaço existente entre os standards de preponderância da prova e o da prova além da dúvida razoável, i. e., entre a mera probabilidade e a prova plena, respectivamente, vê-se que o critério de probabilidade proposta pelo standard da prova clara e convincente atende ao juízo pretendido com a decisão”. (NOGUEIRA, Rafael Fecury. Pronúncia: valoração da prova e limites à motivação.Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2012. p. 178)

Como visto, neste caso concreto, conforme reconhecido pelo juízo de primeiro grau e também em conformidade com os argumentos aportados pelo Tribunal, há uma preponderância de provas no sentido da não participação dos imputados José Reginaldo e Cleiton nas agressões que ocasionaram o falecimento da vítima.
Ainda que se considere os elementos indicados para justificar a pronúncia em segundo grau e se reconheça um estado de dúvida diante de um lastro probatório que contenha elementos incriminatórios e absolutórios, igualmente a impronúncia se impõe. Se houver uma dúvida sobre a preponderância de provas, deve então ser aplicado o in dubio pro reo, imposto nos termos constitucionais (art. 5º, LVII, CF), convencionais (art. 8.2, CADH) e legais (arts. 413 e 414, CPP) no ordenamento brasileiro.