EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO DE DROGAS - ABSOLVIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - DELAÇÃO ANÔNIMA CORROBORADA POR DEPOIMENTOS TESTEMUNHAIS - CAUSA DE REDUÇÃO DE PENA - ART. 33, § 4º DA LEI 11.343/06 - IMPOSSIBILIDADE - DEDICAÇÃO A ATIVIDADES CRIMINOSAS - REDUÇÃO DA PENA-BASE - POSSIBILIDADE - REGIME ABERTO - IMPOSSIBILIDADE - SUBSTITUIÇÃO DA PENA OU SURSIS - VEDAÇÃO LEGAL - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I- Comprovado que o acusado incorreu em uma das condutas do art. 33, da Lei 11.343/2006, sobretudo em vista a delação anônima e o depoimento dos policiais militares que efetuaram sua prisão em flagrante delito, confirmado sob o crivo do contraditório, não há que se falar em absolvição. II- Os depoimentos de policiais como testemunhas gozam de presunção iuris tantum de veracidade, portanto, prevalecem até prova em contrário. III- A dedicação à atividade criminosa impossibilita a aplicação da causa de diminuição do §4º, art. 33, da Lei 11.343/06. IV- Fixadas as penas-base em dissonância com os elementos extraídos dos autos, sua redução é de rigor. V- O delito de tráfico é considerado hediondo, impondo-se, pois, a observância do § 1º, do artigo 2º, da Lei nº 8.072/90, com a aplicação do regime inicial fechado, a negativa de substituição da pena corporal, bem como do benefício do sursis.r restritivas de direitos e do sursis.V.V.P.APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO PRIVILEGIADO - SUBSTITUIÇÃO DA REPRIMENDA POR RESTRITIVA DE DIREITOS - POSSIBILIDADE - TRÁFICO PRIVILEGIADO - REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA - REGIME ABERTO. I - Apesar da proibição contida no art. 33, § 4º da Lei 11.343/06, é possível a substituição da pena por restrição de direitos, considerando que a vedação imposta configura tratamento genérico violador do princípio constitucional da proporcionalidade. II - A aplicação do §4º, do art. 33, da nova lei de droga, traz à baila a figura do tráfico privilegiado, que não está elencado no rol dos crimes hediondos ou a eles equiparados, de modo que não se estabelece como regra a fixação do regime fechado para o início do cumprimento da pena.
(...)
VOTO
Peço vênia ao Eminente Relator para de seu voto discordar em alguns pontos, no tocante ao apelo defensivo.
O privilégio não se harmoniza com a hediondez. São conceitos incompatíveis, antagônicos. Não se pode ter por repugnante, asqueroso, nojento, um tipo derivado benéfico, cuja estrutura indica um crime menor, mais brando, merecedor de tratamento penal benigno.
O denominado tráfico privilegiado merece resposta penal menos gravosa exatamente porque considera-se que o agente se envolveu ocasionalmente com esta espécie delitiva, não é reincidente, não ostenta maus antecedentes, não se vincula a qualquer organização criminosa e não faz da prática de crimes, em especial de crimes contra a saúde pública, seu meio de vida, não está a usufruir, costumeiramente, dos lucros desta atividade ilícita.
À semelhança do que ocorre com o homicídio qualificado-privilegiado, o legislador, no âmbito da Lei 8.072/90, não elencou o tráfico privilegiado como crime similar ao hediondo, inexistindo motivo razoável para que o primeiro delito não seja crime hediondo e o segundo tenha tal configuração, porquanto a natureza de ambos é idêntica.
É de ser lembrado velho brocardo jurídico-penal segundo o qual onde existe a mesma razão de decidir deve ser gerada a mesma solução.
Outro argumento para se afastar a natureza de hediondez do crime de tráfico privilegiado é que malgrado a Constituição Federal impeça a graça e a Lei 11.343/06 imponha óbice ao indulto em relação ao tráfico ilícito de entorpecentes, na qualidade de delito equiparado ao hediondo, o Presidente da República, por meio do Decreto 6.706, de 22/12/2008, concedeu indulto, sob determinadas condições, a condenados pelo crime do artigo 33, § 4º, da Lei Antidrogas, reforçando a tese de que o tráfico privilegiado encontra-se completamente fora do elenco dos delitos hediondos e a estes equiparados.
Assim, não possuindo o delito de tráfico privilegiado a pecha da hediondez, impedir a substituição de pena neste caso é equiparar, neste aspecto, um crime não hediondo a um de natureza hedionda, situação ofensiva ao princípio da proporcionalidade, cuja observação é fundamental para uma correta interpretação das normas penais.
Como afirmam Luiz Flávio Gomes, Antônio García-Pablo de Molina e Alice Bianchini, "o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade ou da proibição de excesso é princípio geral do Direito. É válido, assim, para todas as áreas: penal, processual penal, administrativo etc... Nesse sentido, o princípio da proporcionalidade rejeita o estabelecimento de cominações legais (proporcionalidade em sentido abstrato) bem como a imposição de penas (proporcionalidade em sentido concreto) que careçam de relação valorativa com o fato cometido, contemplado este em seu significado global. O princípio da proporcionalidade, como se vê, conta também com um duplo significado: (a) político-criminal e (b) interpretativo e dogmático. Seus destinatários, portanto, são: o Poder Legislativo (que há de estabelecer penas proporcionais, em abstrato, à gravidade do delito), o intérprete e o Poder Judiciário (as penas que os juízes imponham ao autor do delito devem ser proporcionais à sua concreta gravidade)" (ob. cit., p. 553).
Extrai-se da lição supra caber ao Poder Judiciário, quando da imposição da pena, atentar para o princípio da proibição de excesso, decotando da legislação infraconstitucional as partes desproporcionais, ofensivas à idéia de razoabilidade.
Observando tal princípio, que decorre da Constituição Federal, verifica-se ser desproporcional, desarrazoado equiparar, em relação à proibição da substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, o crime de tráfico ilícito de drogas como de natureza hedionda ao delito de tráfico privilegiado.
A solução que apresento tem raiz no princípio da proporcionalidade que, por sua vez, está pautado no princípio da igualdade, consagrado no art. 5º da Constituição da República de 1988 - "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)". A equiparação hedionda citada acima ofende a concepção atual de igualdade, a valorativa, sintetizada no tratamento igualitário para os iguais e tratamento desigual para os que se desigualam, de modo justificado e razoável.
A aplicação da vedação prevista em lei infraconstitucional é um resultado possível a partir de uma visão positivista clássica da função jurisdicional. O constitucionalismo do Estado Democrático de Direito desafia uma releitura do papel do julgador que passa de mero aplicador da lei, numa cega sujeição, a guardião dos direitos fundamentais, entre eles a igualdade e a proporcionalidade.
Assevera Lênio Luiz Streck que: "o advento do constitucionalismo do Estado Democrático de Direito proporcionou uma verdadeira revolução copernicana no campo da interpretação do direito. A afirmação da importância do contramajoritarismo, instrumentalizado por uma jurisdição constitucional mais interventiva, coloca freios significativos na liberdade de conformação do legislador. O conteúdo fortemente dirigente e compromissório dos textos constitucionais estabelece um novo modo de aferir a constitucionalidade das leis. Já não se trata de examinar a formalidade dos atos normativos. Trata-se, agora, de examinar a conformidade das leis a partir de sua materialidade. Esse relevante fenômeno deve ser examinado no contexto de uma alteração fundamental no papel do direito e do Estado. Na verdade, o que ocorreu foi uma revolução copernicana no campo do direito público. A própria Constituição será, agora, fonte de direito, prescindindo, por vezes, da interposição legislativa. O direito público - instrumentalizado a partir de uma Constituição principiológica - passa a atuar como capilarizador das relações jurídico-políticas da sociedade. (...)
O novo paradigma instituído pelo Estado Democrático de Direito - e conseqüentemente o papel diretivo do texto constitucional compreendido na sua materialidade - acarreta, a toda evidência, compromissos e inexoráveis conseqüências no campo da formulação e aplicação das leis. Não há espaço legiferante fora da Constituição. Logo, em assim sendo, continuo a insistir (e acreditar) que todas as normas da Constituição têm eficácia, e até mesmo as assim denominadas normas "programáticas" - como as que estabelecem a busca da igualdade, a redução da pobreza, a proteção da dignidade, etc. - comandam a atividade do legislador (inclusive e logicamente, do legislador penal), buscando alcançar o objetivo do constituinte. Esse comando (ordem de legislar) traz implícita - por exemplo, no campo do direito penal - a necessária hierarquização que deve ser feita na distribuição dos crimes e das penas, razão pela qual o estabelecimento de crimes, penas e descriminalizações não pode ser um ato absolutamente discricionário, voluntarista ou produto de cabalas. Em outras palavras, não há liberdade absoluta de conformação legislativa nem mesmo em matéria penal, ainda que a lei venha a descriminalizar condutas consideradas ofensivas a bens fundamentais. Nesse sentido, se de um lado há a proibição de excesso (Übermassverbot), de outro há a proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Ou seja, o direito penal não pode ser tratado como se existisse apenas uma espécie de garantismo negativo, consubstanciado na garantia de proibição de excesso. Não há, repito, qualquer blindagem que "proteja" a norma penal do controle de constitucionalidade (entendido em sua profundidade, que engloba as modernas técnicas ligadas à hermenêutica, como a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto, o apelo ao legislador, etc.)." (Streck, Lenio Luiz. Constituição e Bem Jurídico: a ação penal nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor - o sentido Hermenêutico-Constitucional do art. 225 do CP. Revista Juristas, João Pessoa, a. III, n. 92, 19/09/2006. Disponível em: http://www.juristas.com.br/modrevistas.asp?ic=1311).
O princípio da proporcionalidade corresponde, como já destacado, às exigências do princípio da igualdade (Luzon Pena, Curso de Derecho Penal: parte general, p. 85 e 86). Todavia, é certo que se relaciona com outros princípios, sendo que a doutrina majoritária aponta sua natureza constitucional a partir da dignidade humana, já que "só a pena proporcional à gravidade do fato é humana e respeitosa com a dignidade da pessoa". O Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que o princípio da proporcionalidade "tem fundamento constitucional na medida em que representa o aspecto substancial do devido processo legal, que vem expressamente contemplado no art. 5º. LIV, da CF", especificamente no espectro do devido processo legal substantivo que informa a limitada criação de regras jurídicas limitadas pela justeza (Gomes, Luiz Flávio (Coord). Direito Penal, volume 1: introdução e princípios fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 554).
Considerando que o comando da proporcionalidade remete o intérprete a "um juízo lógico ou de ponderação que compara, valorativamente, a gravidade do fato antijurídico e a gravidade da pena" (op. cit., p. 555), e, ainda, considerando que seus destinatários são o legislador (cominação legal proporcional - sentido abstrato) e o julgador (imposição de pena proporcional - sentido concreto), reconheço a possibilidade de, no tráfico privilegiado, haver o afastamento da pena privativa de liberdade, substituída por pena restritiva de direitos.
Para ilustrar o que foi aqui defendido, tomo o seguinte exemplo: àquele que cumpre o papel de "mula" ou "aviãozinho" poderá ser imposta uma pena de um ano e oito meses de reclusão, grau mínimo. A vedação da substituição impõe o tratamento penal mais gravoso, o cárcere. Se a conduta imputada fosse a do porte ilegal de arma (pena mínima de dois anos de reclusão), a substituição da pena privativa de liberdade seria admitida. Qual razão fundamentaria a distinção? Ambas as condutas contém uma lesividade atinente à coletividade e têm como objeto material "produtos" vigorosamente relacionados à criminalidade, armas e drogas.
Assim, não há qualquer ofensa ao disposto na Lei 8.072/90 e ao artigo 44 da Lei 11.343/06 ao se estipular o regime inicial de cumprimento de pena como aberto e ao ser substituída a pena prisional por penas restritivas de direitos.
Destarte, substituo a pena privativa de liberdade aplicada aos apelantes Amauri Mendes de Souza e Valberlan Ferreira Sousa, cada um deles, por duas restritivas de direitos, a saber: prestação de serviços comunitários e prestação pecuniária no valor de um salário mínimo, a ser destinada a entidade indicada pelo Juízo de Execuções Penais.
Isso posto, pedindo vênia do Eminente Relator, DOU PROVIMENTO PARCIAL À APELAÇÃO, de modo mais amplo, e substituo a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direito, assim como altero o regime inicial de cumprimento da pena do fechado para o aberto em relação a dois dos apelantes, acima identificados.
Custas, ex lege.
É como voto.
SÚMULA : DERAM PROVIMENTO PARCIAL, VENCIDO PARCIALMENTE O DESEMBARGADOR VOGAL.
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