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terça-feira, 27 de outubro de 2020

TRÁFICO DE ENTORPECENTES - AUTORIA DUVIDOSA - ABSOLVIÇÃO

 Processo: 1.0443.17.002146-5/001

 Relator: Des.(a) Corrêa Camargo 

Relator do Acordão: Des.(a) Corrêa Camargo 

Data do Julgamento: 21/10/0020 Data da Publicação: 27/10/2020 

EMENTA: PENAL E PROCESSUAL PENAL - APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES - AUTORIA DUVIDOSA -- VERSÃO ACUSATÓRIA NÃO CORROBORADA PELOS ELEMENTOS DE PROVA PRODUZIDOS NOS AUTOS - ABSOLVIÇÃO - RECURSO PROVIDO. - Não passando de mera suspeita a imputação do crime à acusada, não tendo o Ministério Público se desincumbido de provar a sua autoria em relação à empreitada delituosa, a absolvição é medida de rigor. - Recurso provido. 

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0443.17.002146-5/001 - COMARCA DE NANUQUE - APELANTE(S): VALDELICE LACERDA DA SILVA - APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS A C Ó R D Ã O Vistos etc., acorda, em Turma, a 4ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em DAR PROVIMENTO AO RECURSO. DES. CORRÊA CAMARGO RELATOR. DES. CORRÊA CAMARGO (RELATOR) 

V O T O Trata-se de apelação criminal, interposta por Valdenice Lacerda da Silva, já que irresignada com a r. sentença de ff. 120-125, que julgou procedente a pretensão exordial e o condenou como incurso nas sanções do art. 33, §4º, da Lei nº 11.343/06, às penas de 01 (um) ano e 08 (oito) meses de reclusão, em regime inicial fechado e 166 (cento e sessenta e seis) dias-multa, estes na razão de 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à época dos fatos. A pena privativa de liberdade foi substituída por duas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. A apelante, em suas razões recursais, ofertadas às ff. 134-136, pleiteou a absolvição, ao argumento de que não comprovada a autoria delitiva. O apelado, por seu turno, apresentou contrarrazões às ff. 138-149, rebatendo as teses apresentadas e requerendo o não provimento do recurso aviado. Instada a se manifestar, a Procuradoria de Justiça opinou, às ff. 154-157, pelo não provimento do apelo. É o relatório, Passa-se à decisão: O recurso é próprio e tempestivo, motivo pelo qual dele conheço. Para contextualizar, eis os fatos narrados na exordial acusatória: "(...) no dia 14 de maio de 2017, por volta das 23h25min, na Praça Carlos Chagas, altura do n°. 09, centro, nesta cidade, VALDELICE LACERDA DA SILVA, de forma livre e consciente, tinha em depósito drogas. para a venda, mais precisamente, 11 (onze) porções da droga identificada como cocaína, pesando aproximadamente 10,3g, tudo sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Segundo o apurado, a Policia Militar vinha recebendo denúncias anônimas que apontavam a denunciada como envolvida no tráfico e que, inclusive, utilizava-se do Trailer Altas Horas onde trabalhava para desempenhar sua atividade ilícita, oportunidade em que foram informados que as drogas estariam sendo acondicionadas no jardim externo do Hotel Petrus. Diante de tais informações, os policiais militares montaram uma campana em ponto estratégico e flagraram o exato momento em que a denunciada Valdelice deslocou-se até o jardim do Hotel Petrus e deixou algo aos pés de um coqueiro, retornando, em seguida, ao trailer. 

Na sequência, os policiais integrantes da guarnição foram até o local e lograram localizar e apreender a droga ali deixada pela denunciada, constatando-se a ocorrência do tráfico, o que resultou em sua prisão.

 Frise-se que os trabalhos investigativos da Polícia Civil também constataram a ocorrência do tráfico de drogas levado a efeito pela denunciada em conluio com terceiras pessoas, sendo certo que a ação aqui narrada visava evitar o estado de flagrância em caso de busca no seu ponto comercial. 

(...)" É o que, nos termos já relatados, ensejou a condenação e, por desdobramento, a interposição do presente inconformismo. Pois bem. A materialidade delitiva do crime de tráfico de drogas restou demonstrada nos autos pelo Auto de Prisão em Flagrante Delito de ff. 02-09, pelo Boletim de Ocorrência de ff. 12-15, pelo Exames Preliminares de Constatação de Drogas de f. 18, pelo auto de apreensão de f. 21, pelo Laudo Químico-toxicológico definitivo de f. 106 e pela prova testemunhal produzida. Já para alinhavar a autoria, destaca-se: 

 A ré, Valdelice Lacerda da Silva, quando ouvida na fase policial (f. 08), negou os fatos narrados na denúncia, ao afirmar: 

"(...) Acerca dos fatos narrados no Reds. n°.2017-010088717-001, a declarante tem a dizer o seguinte: Que a declarante é proprietária do trailer denominado Altas Horas. localizado na Praça Carlos Chagas: Que na data de ontem a declarante estava no trailer com suas duas filhas: Que por volta das 22h00min. se dirigiu até o bar de PAULINHO, na Avenida Belo Horizonte. para ver ser tinha cerveja para vender; Que ao perceber que o bar estava fechado. voltou para o trailer: Que a declarante percebeu a presença da viatura próximo ao trailer: Que os três policiais desceram da viatura, então a declarante perguntou se era alguma coisa, tendo eles respondido que não: Que os policias começaram a vasculhar o local e atravessaram a rua e a declarante ficou sentada no trailer: Que após a varredura dois dos policiais seguiram a pé em direção a Avenida Belo Horizonte: Que após fazerem varredura no jardim do Hotel Petrus, retornaram e deram voz de prisão á declarante. alegando que tinha achado droga no jardim e que a droga pertencia a declarante; Que os policiais disseram que haviam recebido várias denuncias de que a declarante e seu esposo Tarcísio estavam vendendo drogas no trailer: Que os policiais perguntaram a declarante se tinha drogas no interior do Trailer. tendo esta respondido que não; Que os policiais deram busca no trailer, mas nada de ilícito foi encontrado; Que a declarante afirma que para chegar até o trailer, passou no jardim em frente av. Hotel Petrus, onde foi localizada a droga, mas esclarece que não foi ela quem deixou a droga no pé de coqueiro; Que não percebeu se alguém chegou naquele local e deixou algo; (...)"

Em seu interrogatório, em mídia anexa, à f. 100, a acusada voltou a negar qualquer envolvimento com a prática delitiva. Na oportunidade, alegou que a prática do crime lhe está sendo imputada em virtude de seu marido já ser conhecido no meio policial como contumaz em delitos afetos ao tráfico de drogas. Narrou que no momento dos fatos ela estava retornando de um bar, onde havia ido adquirir algumas cervejas, e que acreditou que a abordagem policial fosse em virtude de seu trailer não ter alvará de funcionamento, o que, segundo ela, ocasiona frequentes abordagens de agentes públicos. Alegou, ainda, que os policiais militares não apreenderam as drogas em sua propriedade e, embora houvesse outras pessoas no local, não chamaram ninguém para acompanhar as buscas que culminaram na apreensão dos entorpecentes. A testemunha Amanda dos Santos Adriano, afirmou que frequenta o trailer da acusada há 02 (dois) anos e não tem ciência de seu envolvimento com o tráfico de drogas. Alegou, ainda, que estava no local no dia dos fatos e não viu as drogas arrecadas pelos militares, eis que eles não as exibiram para nenhum dos presentes (mídia anexa à f. 100). A testemunha Jedson Pinheiro de Jesus, afirmou que frequenta o trailer da acusada há 05 (cinco) anos e estava presente no dia dos fatos. Alegou que quando chegou no local os policiais já estavam lá, não presenciando o momento em que os entorpecentes foram arrecadados. Ressaltou que nunca presenciou outra abordagem policial no local, e não sabe dizer se a acusada se utilizava de seu trailer para comercializar drogas (mídia anexa à f. 100). A testemunha Eliana Maria de Jesus Santos, por sua vez, afirmou que não presenciou os fatos narrados na denúncia, se limitando a fazer considerações acerca da vida pregressa da acusada. As demais provas produzidas ao longo da instrução referem-se aos depoimentos dos policiais que participaram da prisão em flagrante da acusada; que, contudo não estabeleceram qualquer ligação concreta entre a ré e as drogas apreendidas, uma vez que não teriam-na visto, efetivamente comercializando os entorpecentes, tampouco dispensando-os ou escondendo-os no local em que encontrados. Neste sentido, o policial militar condutor do flagrante, Geovane Braz de Souza, afirmou em sede policial, à f. 02:

"(...) Acerca dos fatos narrados no Reds. n.2017-010088717-001. o declarante tem a dizer o seguinte: Que nesta data se encontrava de serviço, juntamente com Sgt Carlos e Sd Dutra , quando receberam várias informações que Valdelice Lacerda da Silva e seu amásio TARCISIO estariam traficando drogas no trayler denominado "Altas Horas" e que o referido estabelecimento comercial pertence ao casal: Que segundo a denúncia uma "carga" com drogas ficava escondida no jardim do lado de fora do hotel Petrus; Que diante das informações montaram uma campana em um local estratégico, quando em alguns minutos visualizaram uma pessoa do sexo feminino com estatura mediana. magra, morena, cabelos pretos e longos, trajando calça moletom cor Cinza e blusa de moletom cor preta identificada posteriormente como a denunciada Vadelice Lacerda da Silva, tendo esta colocado algo ao pés de um coqueiro localizado no jardim do referido hotel, e depois retomou ao trayler Altas Horas; Que foram ao local onde ela havia escondido algo, momento em que o declarante localizou entre os pés do coqueiro uma sacola plástica na cor preta contendo 11 (onze) papelotes com substância semelhante a cocaína prontas para o comércio; Que durante a varredura no referido jardim o Sd Dutra, que ficou ao lado do trayler, percebeu que a autora Valdelice estava nervosa e olhava constantemente na direção do declarante e do Sgt Carlos: Que o Sgt Carlos perguntou a Valdelice se havia algo ilicitodentro do trayler, tendo ela respondido que não e autorização a entrada dos policiais no interior do trailer; Que foi realizado busca no interior e mais da de iiicito encontrado, as buscas foram acompanhadas pelo funcionário da trayler ANTONIO ARLOS RIBEIRO: Que diante do exposto deram voz de prisão a autora Valdelice, por tráfico ilícita de drogas a qual foi conduzida a esta delegacia juntamente com a droga arrecadada; Que Tarcísio já fora preso em data pretérita por envolvimento ao trafico ilícito de drogas; Que a testemunha Antônio não foi trazido para esta Delegacia, uma vez que não foi encontrado nada de ilícito no interior do trailer. (...)"

Em juízo, Geovane reafirmou como se deu a dinâmica dos fatos, ressaltando que encontrou as drogas em um canteiro do hotel que fica próximo ao local onde estava o trailer da acusada. Destacou, por fim, que a ação dos militares foi motivada por uma denúncia anônima dando conta que a acusada estava traficando no local. No mesmo sentido foram as declarações dos também policiais militares Charles Dutra Carneiro e Carlos Roberto Alves de Oliveira, às ff. 04-05 e 06-07 e em mídia anexa à f. 100. Diante de tais elementos, com a devida venia ao d. Sentenciante, conclui-se que o acervo probatório não é suficiente para erigir um juízo de certeza, devendo o princípio in dubio pro reo socorrer a acusada. Isso porque tudo o que se tem contra a ré é o fato de que a sua abordagem teria se dado após as supostas informações de que estaria ela comercializando substâncias entorpecentes em seu trailer, não tendo, ainda, surgido qualquer elemento que corroborasse tais informações. Não se esclareceu de onde partira a suposta denúncia, tampouco quem a fizera. Suponha-se que tivesse partido de um desafeto ou inimigo da acusada, visando prejudicá-la; seria o suficiente para condenação por tão grave crime? Assim, com relação aos depoimentos prestados pelos policiais, embora não furte a lei sua validade, no bojo dos presentes autos devem ser vistos com bastante cautela e reserva e, já que absolutamente genéricos e nada reveladores, devem ser descaracterizados como prova. Neste sentido, vale transcrever:


"Tóxico. Art. 12 e 18, I, da Lei 6368/76. Policiais. Depoimento. Validade. - "O depoimento prestado por policiais deve ser avaliado com reservas, em face do interesse que possuem em demonstrar a eficiência e legitimidade da investigação que empreenderam. Em face de a condenação ter sido fundada apenas nos depoimentos dos policiais que efetuaram a prisão, patente a falta de robustez da prova coligida no sentido de embasar a condenação da ré, não restando clara e induvidosa a sua participação nos fatos criminosos" (TRF 4ª R. - 2.ª T. AP 96.04.51305-2 - Rel. Edgard Lippmann Jr. - j. 22.11.1996 - RJ 234/146).


Na mesma quadra, anota a doutrina: 


"(...) Os policiais não estão impedidos de depor, pois não podem ser considerados testemunhas inidôneas ou suspeitas, pela mera condição funcional. Contudo, embora não suspeitos, têm eles todo o interesse em demonstrar a legitimidade do trabalho realizado, o que torna bem relativo o valor de suas palavras. Por mais honesto e correto que seja o policial, se participou da diligência, servindo de testemunha, no fundo estará sempre procurando legitimar a sua própria conduta, o que juridicamente não é admissível. Necessário, portanto, que seus depoimentos sejam corroborados por testemunhas estranhas aos quadros policiais. Assim, em regra, trata-se de uma prova a ser recebida com reservas, ressalvando-lhe sempre a liberdade de o juiz, dependendo do caso concreto, conferir-lhe valor de acordo com sua liberdade de convicção..." (CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 9. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 296.).  


Ressalta-se que as drogas foram encontradas próximas a um hotel, local de grande circulação de pessoas, sendo plenamente possível que os entorpecentes tivessem sido deixados ali por outra pessoa que não a acusada.


Logo, na verdade não existe nos autos prova firme, forte e clara a ensejar um decreto de cunho condenatório contra a apelante. Desta forma, apesar de reconhecer ser até possível que a acusada tenha praticado o fato narrado na denúncia, não há a certeza necessária para um decreto condenatório. Diante de tudo o que consta dos autos, a solução mais acertada é absolver a ré, forte na aplicação do princípio in dubio pro reo. 

 DA CONCLUSÃO. Ante o exposto, DOU PROVIMENTO AO RECURSO, para absolver a apelante Valdelice Lacerda da Silva formulada na denúncia, na forma do art. 386, VII, do Código de Processo Penal. Deixa-se de determinar a expedição do competente alvará de soltura por se verificar que foi concedido à apelante o direito de recorrer da r. Sentença condenatória em liberdade. 

 Sem custas. É como voto. 

DESA. VALÉRIA RODRIGUES QUEIROZ (REVISORA) - De acordo com o(a) Relator(a). 

DES. EDUARDO BRUM - De acordo com o(a) Relator(a). 

 SÚMULA: "DERAM PROVIMENTO AO RECURSO"



quinta-feira, 15 de outubro de 2020

HOMICÍDIO QUALIFICADO - DECISÃO DE PRONÚNCIA - AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE AUTORIA - IMPRONÚNCIA - RECURSO PROVIDO

 

Processo: 1.0443.13.003818-7/001

Relator: Des.(a) Furtado de Mendonça

 Relator do Acordão: Des.(a) Furtado de Mendonça

Data do Julgamento: 17/03/0020

Data da Publicação: 01/04/2020

EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - HOMICÍDIO QUALIFICADO - DECISÃO DE PRONÚNCIA - AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE AUTORIA - IMPRONÚNCIA - POSSIBILIDADE - RECURSO PROVIDO. - Se a prova produzida afasta o ''animus necandi'', não havendo nos autos quaisquer indícios que apontem na direção do recorrente, deve o mesmo ser impronunciado. REC EM SENTIDO ESTRITO Nº 1.0443.13.003818-7/001 - COMARCA DE NANUQUE - RECORRENTE(S): GILSON VITÓRIO DIAS - RECORRIDO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

A C Ó R D Ã O Vistos etc., acorda, em Turma, a 6ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em PROVER O RECURSO. DES. FURTADO DE MENDONÇA RELATOR. DES. FURTADO DE MENDONÇA (RELATOR) V O T O Trata-se de Recurso em Sentido Estrito, com suporte no art. 581-IV, do CPP, interposto por GILSON VITÓRIO DIAS, que se insurge contra a r. sentença de fls. 429/431v, prolatada pelo MM. Juiz de Direito da Vara Criminal da Comarca de Nanuque, que o pronunciou como incurso nas sanções do art. 121, §2°, II e IV, do Código Penal.

Sobre os fatos, narra a denúncia que no dia 15 de novembro de 2005, aproximadamente às 23h00min, na rua Castro Alves, n° 285, bairro Vila Esperança, na Comarca de Nanuque, especificamente na residência da vítima, Hanilton da Silva Colares, vulgo "Niltinho", com vontade de matar, por motivo torpe (vingança) e dificultando a defesa, por uso de surpresa e dissimulação, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima Valceni Barbosa dos Santos, alvejando-a e causando lesões que foram a causa eficiente de sua morte. Segundo consta, Hanilton efetuou os disparos por ordem de Gilson, ora recorrente, por conta de uma dívida de R$ 6,00 (seis) reais, que a mãe da vítima possuía com Gilson, e em face de desentendimentos gerados em razão de tal dívida.

A vítima quedou insatisfeita com a forma como o ora recorrente teria feito a cobrança da dívida, vez que chamou a mãe da vítima de vaca, safada, vagabunda. Assim, a vítima foi tirar satisfações com o acusado, inclusive, chegando a agredir Gilson o "pano de um facão" (parte diametralmente oposta à lâmina do facão), fato que redundou em desejo de vingança por parte de Gilson e, posteriormente, no crime em comento. Ainda segundo a exordial acusatória, no dia, hora e local do crime, a vítima se encontrava em sua residência, com sua mãe e seu irmão, quando o segundo acusado bateu na porta e se passou por amigo, momento em que iniciou conversa descompromissada com a vítima e seus familiares acima.

Ato contínuo, após quebrar a resistência da vítima, com a narrada dissimilação, de inopino, sacou a arma e efetuou os disparos, surpreendendo a vítima e dificultando a sua defesa, tendo-a atingindo quando estava sentada no sofá, só não efetuando outros disparos dada a intervenção da mãe e irmão da vítima. O feito teve regular processamento e, aos 19 de dezembro de 2018, o d. Magistrado singular pronunciou o ora recorrente pela prática do delito previsto no art. 121, §2°, II e IV, do Código Penal.

Contra essa decisão é que se insurge a d. Defesa, razões fls. 435/436v, alegando não ter restado provada a autoria atribuída ao acusado Gilson. Requer, portanto, a impronúncia do recorrente.

O parquet apresentou suas contrarrazões às fls. 438/443, pugnando pela manutenção do ato fustigado. Em juízo de retratação, o decisum vergastado foi mantido (fl. 453).

O d. Procurador de Justiça Antônio de Pádova Marchi Júnior, fls. 461/468, manifesta-se pelo conhecimento e desprovimento do recurso. É o relatório. Conheço do recurso, pois presentes os pressupostos de admissibilidade e processamento. Entendo, data venia, que o d. magistrado singular não agiu com o brilhantismo de sempre ao pronunciar o ora recorrente Gilson Dias. A materialidade do delito, inconteste, encontra amparo no laudo de exumação de fls. 14/17 e na certidão de óbito de fl. 45.

No concernente à autoria, no entanto, entendo que não restaram devidamente expostos os indícios necessários para a prolação da decisão de pronúncia. Ainda que para a sentença de pronúncia, que julga tão somente a admissibilidade da acusação de matéria afeta à competência do Tribunal do Júri, baste o livre convencimento motivado acerca da existência do crime (fato) e indícios suficientes da autoria, como bem estabelece o art. 413 do Código de Processo Penal, entendo que estes últimos não estão presentes nos autos, e, como cediço "Quod non est in actis non est in mundo".

É que, debruçando-me detidamente sobre os autos, não pude encontrar, no conjunto probatório carreado aos autos, elementos suficientes para a pronúncia do ora recorrente - ou, no caso, para sua manutenção. Ouvido em juízo, Gilson negou veementemente a prática do delito que lhe foi imputado, acrescentando que dias antes dos fatos tivera um desentendimento com a mãe da vítima e que acredita que por essa razão é que lhe foi atribuída a autoria do crime.

E, bem verdade, seu depoimento não se encontra desvencilhado do arcabouço probatório presente nos autos, mormente porque as testemunhas de acusação ouvidas tanto em sede administrativa como judicial não foram capazes de fornecer indícios mínimos de sua autoria, uma vez que apenas relatam que suspeitam que Gilson tenha mandado "Niltinho" matar a vítima ou que "ouviram dizer" ter sido ele o mandante do crime. Nesse sentido, a mãe da vítima, Maria de Lourdes Barbosa dos Santos, quando ouvida administrativamente, relatou com riqueza de detalhes o ocorrido. Quanto à suposta autoria atribuída ao ora recorrente, entretanto, apenas forneceu sua convicção. Vejamos: (...) "que, na noite de 15 de novembro do corrente ano, uma terça feira, a depoente estava em casa por volta das 23:00 horas juntamente com seus filhos Fabrício e Valcenir, vítima nestes autos que, naquela hora alguém bateu na porta e Valdenir levantou abrindo a mesma; que, assistiam um filme naquele momento; que, ao abrir a porta era o elemento conhecido Niltinho, e Cartorze; que a depoente disse para seu filho não abrir a porta para ninguém, antes que a pessoa que chamava se identificasse; que a depoente ficou surpresa com a visita de Niltinho à sua casa naquele momento, mesmo já conhecendo o mesmo há muito tempo, porque tal fato nunca tinha acontecido, apesar de seus filhos tem amizade com Niltinho como disse antes; que a depoente chamou o Niltinho para entrar dentro de casa vez que estava 'lubrinando', mas que mesmo insistindo ele não entrou e ele passou a indagar sobre o filme que estava assistindo, inclusive a depoente pensou que fosse algum vizinho; que o Niltinho ficou em pé na porta com metade da cabeça olhando para o interior da casa e com as mãos para trás; que a depoente estava sentada no sofá ao lado do seu filho e naquele momento sem que houvesse qualquer discussão Niltinho apontou uma arma de fogo para o seu filho disparando contra o mesmo que ainda estava sentado e voltou a disparar novamente sendo dois disparos e naquele momento seu filho caiu no seu colo (...) que a depoente passou a dever a pessoa de Gilsinho, dono de uma mercearia (...) Gilsinho voltou a lhe cobrar desta feita com muito desaforo, lhe chamando de veaca, safada (...) que seu filho Valcenir tomou conhecimento do tratamento dispensado por Gilsinho à depoente e foi lá pagou o Gilsinho, mas houve uma discussão entre ambos, na qual seu filho armado com um facão deu umas panadas em Gilson (...) que não houve ameaça alguma por parte do Gilsinho contra seu filho mas a depoente o advertiu de que tomasse cuidado com Gilson, porque ele poderia arranjar um elemento ruim para lhe matar; que esclarece a depoente Niltinho e Gilsinho eram chegados um do outro (...) a deponete informa que ouviu o comentário de Niltinho por uma duas ou três vezes disse para várias pessoas ouvir de que aqueles pano de facão que Valcenir, vítima nestes autos tinha dado em Gilsinho não ia ficar de graça por ele era muito amigo do Gilsinho; que não lhe sobra nenhuma dúvida de que seu filho foi vítima de crime pistolagem a mando do Gilsinho (...) sic - fls. 10/11 (destacado). Em juízo, Maria de Lourdes ratificou as declarações prestadas e acresceu que no momento dos fatos indagou ao corréu Hanilton quem é que teria lhe mandado cometer o delito, se teria sido Gilson, sendo que "Niltinho" assumiu toda a culpa. Disse ainda que "todo mundo tem suspeita" de que Gilson foi o mandante do crime (fl. 424).

O irmão da vítima, Fabrício Barbosa dos Santos, quando ouvido na delegacia de polícia, prestou uníssona declaração quanto aos deslindes do caso, acrescentando, no concernente à possível participação do ora recorrente, o que se segue: (...) "há uns quinze dias atrás o Gilsinho cobrou de sua mãe desta feita com desaforo dizendo que ela era uma veia safada, veaca, e que podia tomar vergonha na cara e lhe pagar; que seu irmão tomou conhecimento da humilhação e desaforo que Gilson fez com sua mãe; houve um desentendimento com o mesmo no qual seu irmão de uns pano de facão em Gilson, mas sem maiores consequências; que depois dos desentendimentos que houve o Gilson e nem o Niltinho ameaçavam diretamente ao seu irmão; que depois da morte do seu irmão é que ouviu comentários de que o Niltinho teria dito que aqueles pano de facão que seu irmão tinha dado no amigo dele não ia ficar de graça; (...) que afirma o depoente que Gilsinho tem participação na morte do seu irmão, não podendo afirmar de que jeito, se pagando, comprando arma para o mesmo (...) sic - fl. 12/v (destacado). De igual modo, a testemunha Júlio Gonçalves, ouvida exclusivamente perante a autoridade policial, informou que não presenciou os fatos e que somente ouviu dizer que o ora recorrente teria ceifado a vida da vítima: (...) "estava na rua da sua casa, por volta das 23:00 horas e escutou alguns tiros; que logo em seguida viu que a pessoa conhecida 'por Niltinho' passou correndo; que antes Niltinho comentou que ia matar um cara no bairro da Vila Esperança, isto naquela rua; que segundo tomou conhecimento o revólver foi emprestado por 'Luquinha', morador perto do campinho do bairro UDR; que por sua vez emprestou o tal revólver para 'Niltinho'; que segundo tomou conhecimento que a morte da pessoa teria sido encomenda por 'Gilsinho', proprietário de uma mercearia (...) e que foi por vingança por causa de dívida; que esclarece o depoente que na noite do crime Niltinho foi na casa da vítima e tomou café com ela, e estava assistindo um filme, que afirma mais uma vez que no dia Niltinho comentou com o depoente que ia matar uma pessoa naquela noite e naquele bairro; que depois do homicídio o depoente nunca mais viu o Niltinho achando que ele está foragido de Nanuque (...) Niltinho antes de matar a vítima tomou café sentado no sofá da sala; que na gíria do povo 'foi Gilsinho quem mandou Niltinho passar o rato na vítima'; que Niltinho comentou para várias pessoas que ia matar a vítima" (...) sic - fl. 21/v (destaquei). Vejo que o supracitado depoimento baseia-se apenas em "achismos" e "ouvi dizer", sendo certo que referida testemunha não presenciou os fatos, circunstância essa observada pelo relato de que o executor do crime teria tomado café com a vítima instantes antes de cometer o delito, o que sequer foi relatado pela mãe ou pelo irmão do falecido. De mais a mais, os policiais militares ouvidos em juízo, Jalmir Pereira Figueiredo, à fl. 375, e Carlos Roberto Alves de Oliveira, à fl. 376, são firmes ao dizer que não se recordam de moradores terem informado que Gilson foi o autor do delito, sendo que essa informação teria partido da família de Valcenir. Acrescem que havia boatos quanto à participação de Gilson mas que, no meio policial, não tomaram conhecimento de relatos nesse sentido. Ora, quer me parecer que mesmo depois da oitiva de diversas testemunhas, tanto de defesa quanto de acusação, não foi possível colher indícios hábeis para a pronúncia do ora recorrente, já que não há nos autos uma única pessoa que indique ter sido ele autor ou coautor do delito.

Há, apenas e tão somente, relatos, suposições ou meras suspeitas quanto ao seu envolvimento.

Alegar que Gilson Dias teria encorajado, estimulado ou mesmo mandado Hanilton ceifar a vida da vítima, além de incongruente com os depoimentos colhidos, já que a mãe da vítima afirmou que Gilson não ameaçou Valcenir e que o irmão deste disse não ter presenciado discussões pretéritas, seria banalizar o princípio in dubio pro societate que vigora nesta fase processual, já que indubitavelmente para a pronúncia se exige mais do que meras conjecturas.

Neste sentido leciona Fernando Capez: "É uma decisão de rejeição da imputação para o julgamento perante o Tribunal do Júri, porque o juiz não se convenceu da existência do fato ou de indícios suficientes de autoria ou de participação. Nesse caso, a acusação não reúne elementos mínimos sequer para ser discutidos. Não se vislumbra nem o fumus boni iuris, ou seja, a probabilidade de sucesso na pretensão punitiva." (CAPEZ, 2012, P. 209). Não se ignora aqui o fato de que Gilson possa de fato ter uma amizade de longa data com o acusado Hanilton, executor assumido dos disparos, ou ainda que seu atrito com a vítima possa ter deixado mágoas, mas isso não basta para uma sentença de pronúncia. Os relatos dos familiares de que Gilson foi o mandante do crime de homicídio, de toda sorte, não encontram amparo nos demais elementos colhidos e juntados aos autos, pelo que tal versão não merece prosperar, embora não seja possível atestar sua invalidade.

Por tudo isso, não se descarta que possa o recorrente ter, de algum modo, concorrido para o crime, conforme versão ministerial. Mas nada há, absolutamente nada, minimamente sólido, no arcabouço probatório, que se preste a transformar esta suposição em um indício, como necessário para um decreto de pronúncia.

De mais a mais, reforço que não se está aqui a suprimir a competência constitucional do Tribunal do Júri para decidir pela condenação ou pela absolvição de um acusado de crime doloso contra a vida. Todavia, somente poderá ocorrer a sentença de pronúncia quando, a teor do Código de Processo Penal, existirem indícios mínimos de autoria.

Por todo o exposto entendo que razão assiste à combativa defesa no referente ao pedido de impronúncia, sem prejuízo, no entanto, de, caso surjam novas provas, ser o recorrente futuramente pronunciado pelo cometimento do crime narrado na exordial acusatória, com a submissão a julgamento popular. Sendo assim e por tudo mais que dos autos consta, DOU PROVIMENTO AO RECURSO defensivo para impronunciar o recorrente Gilson Vitório Dias. Sem custas. DES. JAUBERT CARNEIRO JAQUES - De acordo com o(a) Relator(a). DES. BRUNO TERRA DIAS - De acordo com o(a) Relator(a). SÚMULA: "RECURSO PROVIDO."

 

EXTINÇÃO PUNIBILIDADE - PRESCRIÇÃO PRETENÇÃO PUNITIVA

 

Processo: 1.0443.10.001976-1/001

Relator: Des.(a) Paulo Calmon Nogueira da Gama

Relator do Acordão: Des.(a) Paulo Calmon Nogueira da Gama

Data do Julgamento: 22/04/2020

Data da Publicação: 24/04/2020

 

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - ART.155, §4º, I, DO CÓDIGO PENAL - TRÂNSITO EM JULGADO PARA A ACUSAÇÃO - PENA EM CONCRETO - PRESCRIÇÃO RETROATIVA RECONHECIDA. 1. Ocorrendo o trânsito em julgado da condenação para a acusação, a reprimenda torna-se concreta para o Estado, regulando-se a prescrição pela pena estipulada na sentença. 2. Tendo transcorrido lapso temporal superior ao prazo prescricional entre as datas do recebimento da denúncia e da publicação da sentença condenatória, ainda que descontado o período em que o processo e o curso do prazo prescricional ficaram suspensos, nos termos do art.366 do Código de Processo Penal, impõe-se a declaração da prescrição da pretensão punitiva estatal. APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0443.10.001976-1/001 - COMARCA DE NANUQUE - APELANTE(S): ROGÉRIO PEREIRA DE MACEDO - APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS A C Ó R D Ã O Vistos etc., acorda, em Turma, a 7ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em DECLARAR A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DO RÉU, PELA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. DES. PAULO CALMON NOGUEIRA DA GAMA RELATOR. DES. PAULO CALMON NOGUEIRA DA GAMA (RELATOR)


V O T O

 

Trata-se de recurso de apelação interposto por ROGÉRIO PEREIRA DE MACEDO, contra a sentença de fs. 150/152, na qual foi condenado, pela prática do crime previsto no art.155, §4º, I, do Código Penal, às penas de 02 (dois) anos de reclusão, em regime semiaberto, e 10 (dez) dias-multa, no valor unitário mínimo. Narrou a denúncia que, na primeira quinzena de março de 2010, o acusado adentrou a estação de tratamento de esgoto pertencente à COPASA, situada na zona rural de Serra dos Aimorés, na Comarca de Nanuque/MG, arrombando a fechadura e a porta de madeira dos fundos do imóvel. Após, subtraiu 02 (duas) portas de compensado, 01 (um) vaso com descarga acoplada, 02 (dois) chuveiros, 01 (uma) pia com o pé, 02 (duas) torneiras de pia, 02 (dois) registros de chuveiro e 01 (uma) válvula de pia de inox.

 

A denúncia foi recebida no dia 19 de janeiro de 2011 (f. 66) e, em 15 de outubro de 2014, o processo e o curso do prazo prescricional foram suspensos, com fundamento no art.366 do Código de Processo Penal (fs.78/79).

 

O réu foi citado em 04 de dezembro de 2014 (f.105/v) e o feito retomou seu trâmite. A sentença condenatória foi publicada em mão do escrivão judicial em 18 de janeiro de 2019 (f. 152), e o réu foi dela devidamente intimado em f. 156/v. Em razões de fs. 159/161, a defesa pediu o decote da reincidência, com consequente abrandamento do regime corporal e substituição da pena corporal por restritivas de direitos.

 

O Órgão ministerial local, em contrarrazões de fs. 163/166, pugnou pelo conhecimento e provimento do recurso.

 

A Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer de fs.170/175, recomendou o conhecimento e provimento do apelo.

 

É o relatório. Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.

 

PREJUDICIAL DE MÉRITO - PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA Inicialmente, submeto à Turma Julgadora, de ofício, prejudicial de mérito relativa à ocorrência da prescrição da pretensão punitiva. Os fatos ocorreram em março de 2010 e a denúncia foi recebida em 19 de janeiro de 2011 (f. 66). Ainda, em sentença publicada em 18 de janeiro de 2019 (f. 152), foram impostas ao réu, pela prática do crime previsto no art.155, §4º, I, do Código Penal, as penas de 02 (dois) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa, não tendo havido qualquer recurso por parte do Ministério Público. Assim, como sabido, ocorrendo o trânsito em julgado da condenação para a acusação, a pena torna-se concreta para o Estado, regulando-se a prescrição da ação penal pela reprimenda concretizada na sentença (conforme Súmula 146 do Supremo Tribunal Federal). Considerando, pois, a sanção corporal fixada em desfavor do réu, o prazo prescricional é de 04 (quatro) anos, conforme art.109, V, do Código Penal. Dessa forma, tendo transcorrido lapso temporal superior a 04 (quatro) anos entre as datas do recebimento da denúncia e da publicação da sentença condenatória (mesmo se descontado o período em que o processo e o curso do prazo prescricional ficaram suspensos, ou seja, de 15 de outubro de 2014 a 04 de dezembro de 2014), impõe-se a declaração da extinção da punibilidade do recorrente, em face da prescrição da pretensão punitiva estatal, em sua modalidade retroativa.

 

Ante o exposto, DECLARO A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DO APELANTE ROGÉRIO PEREIRA DE MACEDO, pela ocorrência da prescrição da pretensão punitiva, nos termos do art. 107, IV, 109, V, e 110, §1º, todos do Código Penal, bem como do art.61 do Código de Processo Penal. Tendo em vista que a prescrição da pretensão punitiva equivale à absolvição, fica o réu isento do pagamento das custas processuais e de eventuais registros cartorários. É como voto.

 

quarta-feira, 27 de maio de 2020

AUSÊNCIA DE PROVAS DA MERCANCIA ILÍCITA - DESCLASSIFICAÇÃO - POSSIBILIDADE - CONDENAÇÃO FUNDAMENTADA EXCLUSIVAMENTE NA QUANTIDADE DE DROGA APREENDIDA - INVIABILIDADE - INEXISTÊNCIA DE OUTROS ELEMENTOS QUE AUTORIZEM A CONDENAÇÃO PELO CRIME MAIS GRAVE - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO 'IN DUBIO PRO REO

Um cliente foi condenado por roubo e tráfico de drogas, mesmo nos autos comprovado que o mesmo era usuário através das palavras dos próprios Policiais Militares.



Processo: 1.0443.19.000740-3/001
Relator: Des.(a) Márcia Milanez
Relator do Acordão: Des.(a) Márcia Milanez
Data do Julgamento: 14/05/2020
Data da Publicação: 18/05/2020

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO - AUSÊNCIA DE PROVAS DA MERCANCIA ILÍCITA - DESCLASSIFICAÇÃO - POSSIBILIDADE - CONDENAÇÃO FUNDAMENTADA EXCLUSIVAMENTE NA QUANTIDADE DE DROGA APREENDIDA - INVIABILIDADE - INEXISTÊNCIA DE OUTROS ELEMENTOS QUE AUTORIZEM A CONDENAÇÃO PELO CRIME MAIS GRAVE - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO 'IN DUBIO PRO REO' - ROUBO MAJORADO - REDUÇÃO DA PENA - CORREÇÃO DE ERRO MATERIAL - PENA DE MULTA - REDUÇÃO DE OFÍCIO - POSSIBILIDADE - PROPORCIONALIDADE À PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE
IMPOSTA.

A quantidade da droga apreendida, por si só, não deve conduzir à presunção absoluta de se estar diante do crime de tráfico. Diante da possibilidade de vir o acusado a incorrer em penalidade mais gravosa do que aquela prevista para o crime no art. 28 da mencionada Lei, o convencimento de que o entorpecente era destinado à venda deve estar comprovado.

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0443.19.000740-3/001 - COMARCA DE NANUQUE - APELANTE(S): CASSIANO RODRIGUES QUEIROZ - APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 8ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em DAR PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO.

RELATORA. DESA. MÁRCIA MILANEZ (RELATORA)

V O T O

CASSIANO RODRIGUES QUEIROZ, qualificado nos autos, foi denunciado como incurso nas sanções dos artigos 157, §2º, I, do Código Penal e art. 33 da Lei 11.343/06, porquanto, em 20 de fevereiro de 2019, por volta de 19h20min., na Avenida Antônio Barroso, Centro Industrial, em Nanuque/MG, mediante grave ameaça exercida com emprego de arma, subtraiu, para si, coisa alheia móvel, de propriedade de R. R. C., motorista da viação Três Fronteiras.

Na mesma data, na Rua Camilo Said, nas proximidades do nº 1928, em Nanuque/MG, e instantes após a subtração, o denunciado transportou drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (fls. 02D/04D).

Concluída a instrução probatória, foi o réu condenado pelas imputações de roubo majorado e tráfico de drogas, a cumprir a pena privativa de liberdade de 17 (dezessete) anos e 06 (seis) meses de reclusão, em regime fechado, e 1.747 (mil, setecentos e quarenta e sete) dias-multa (sentença às fls. 98/101v).

Inconformado, apelou o sentenciado (fl. 105v), requerendo a defesa, em suas razões recursais, a absolvição do crime de tráfico, ao argumento de que não restou comprovado que a droga era destinada à venda (fls. 108/109v).

Apresentadas as contrarrazões (fls. 115/118), subiram os autos e, nesta instância, a douta Procuradoria de Justiça opina pelo conhecimento e desprovimento do recurso (fls. 127/128v).

É o relatório, resumido e no que interessa.

Conheço do recurso, presentes os requisitos objetivos e subjetivos de admissibilidade.

Segundo consta da denúncia, no dia 20 de fevereiro de 2019, por volta das 19h20min., na Avenida Antônio Barroso, Centro Industrial, em Nanuque/MG, o denunciado, portando uma faca, subtraiu uma bolsa contendo aproximadamente R$ 800,00 (oitocentos reais), um aparelho celular da marca LG e uma bolsa contendo moedas.

Após o roubo, o denunciado evadiu-se do local. Prosseguindo nas diligências, os policiais dirigiram-se à residência de Cassiano, localizada na Rua Camilo Said, nas proximidades do nº 1928, em Nanuque/MG, ocasião em que o acusado novamente tentou evadir do local transportando uma bolsa verde que continha 37 (trinta e sete) porções de crack.

Incontroversas a materialidade e a autoria do crime de roubo, nos termos do BO de fls. 09/14, auto de apreensão de fls. 17/17v, termos de restituição de fls. 18 e 19, confissão do apelante no APFD e em juízo (fls. 06/06v e mídia de fl. 85) e prova testemunhal coligida, pretende a defesa de Cassiano a absolvição quanto ao crime de tráfico, ao argumento de que não há comprovação de que a droga apreendida era destinada à mercancia. Ao que tudo indica, portanto, a combativa defesa pretende, na verdade, a desclassificação do delito imputado na denúncia para aquele previsto no art. 28 da Lei 11.343/06, mesmo porque o apelante é confesso quanto à propriedade do entorpecente apreendido.

A materialidade é induvidosa, conforme auto de apreensão de fls. 17/17v, laudo de constatação de fls. 22/23 e exame toxicológico definitivo de fls. 92/92v.

No tocante à autoria, com a devida vênia do entendimento do ilustre Magistrado a quo, realmente não se trata de hipótese que autorize a condenação pelo crime mais grave.

Sabe-se que a conduta de "transportar substância entorpecente" encontra previsão tanto no art. 33 quanto no art. 28 da Lei de Tóxicos, sendo que os critérios de diferenciação se encontram presentes no §2º do art. 28 que dispõe, verbis:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

§2º - Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Para a caracterização do delito mais grave, impõe-se a análise atenta do quadro probatório.

No caso, entendeu o Magistrado a quo por descartar a possibilidade uso próprio da droga, em razão da quantidade de entorpecente apreendido, qual seja, 12,07 gramas de crack.

Ocorre que a quantidade da droga apreendida, por si só, não deve conduzir à presunção absoluta de se estar diante do crime de tráfico, e, in casu, tenho que a quantidade, embora não seja pequena, também não é vultosa a ponto de se concluir, exclusivamente com base neste critério, que era destinada à venda a terceiros.

Certo é que, à exceção da quantidade de droga, não há nos autos qualquer outro elemento a corroborar a versão de sua destinação mercantil ou que o réu exercia o narcotráfico.

Por outro lado, a forma de acondicionamento e a natureza da droga apreendida também não levam, por si sós, à configuração da previsão mais gravosa, adequando-se perfeitamente ao crime de uso.

Cumpre ressaltar ainda que, na Comunicação de Serviço de fls. 40/42, os investigadores da Polícia Civil relataram que, segundo informações, o réu é usuário e alcoólatra, confirmando ao final que Cassiano "é viciado contumaz em drogas, mais especificamente em pedra de crack e que possui em seu histórico policial, passagens pelo crime de roubo, furto e ameaça...;" (fl. 42).

Assim, diante da possibilidade de vir o acusado a incorrer em penalidade mais gravosa do que aquela prevista para o crime no art. 28 da mencionada Lei, o convencimento de que o entorpecente era destinado à venda deve estar comprovado, o que não se fez nesses autos.

O apelante afirmou e reafirmou sua condição de usuário em ambas as oportunidades; os policiais que o prenderam não destacaram qualquer envolvimento do réu com o tráfico; não se ouviu sequer um usuário que, no passado, tenha adquirido drogas das mãos do réu; e não foram apreendidos outros materiais indicativos do tráfico.

Inexiste, portanto, comprovação inequívoca que a droga destinar-se-ia a terceiros, impondo-se, diante do quadro descrito, a solução mais favorável ao acusado, em respeito ao princípio do "in dubio pro reo". Corroborando este entendimento, com maestria decidiu o saudoso Des. Edelberto Santiago:

Enfim, pode-se até duvidar de uma conduta inocente por parte dos réus apelantes. É possível mesmo que reste em cada um dos agentes da lei - policiais, representantes do Ministério Publico e magistrados - a íntima convicção relativa à culpabilidade dos acusados na condição de traficantes. No entanto, para uma condenação tão grave e de efeitos tão severos, o convencimento subjetivo há que restar, além das provas indiretas, minimamente provado. (TJMG - trecho de voto proferido pelo E. Des. Rel. Edelberto Santiago nos autos nº 288.397-3 - j. 17/09/2002 - p.20/09/2002).

No mesmo sentido, este Tribunal vem reiteradamente decidindo:

TRÁFICO DE DROGAS - MEROS INDÍCIOS E PRESUNÇÕES - FRAGILIDADE DO CONTEXTO PROBATÓRIO - INSUFICIÊNCIA - PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO - ABSOLVIÇÃO - CORRÉU - AUSÊNCIA DE PROVAS DA TRAFICÂNCIA - APREENSÃO DE PEQUENA QUANTIDADE DE DROGAS - RÉU QUE NÃO NEGA A PROPRIEDADE DAS MESMAS QUE ESTAVAM EM SUA RESIDÊNCIA - ACUSADO QUE NÃO É APONTADO POR QUALQUER TESTEMUNHA COMO SENDO TRAFICANTE OU SEQUER CONHECIDO DO MEIO POLICIAL COMO POSSÍVEL CRIMINOSO - DESTINAÇÃO MERCANTIL NÃO COMPROVADA - TESE DE DESCLASSIFICAÇÃO QUE SE ACOLHE. A existência de meros indícios não autoriza o decreto condenatório, pois, para a condenação, exige-se a certeza da autoria delitiva. O fato de o acusado ser usuário de drogas não o impede de ser, simultaneamente, traficante, porém, quando as provas dos autos geram dúvidas em relação à conduta de tráfico, mas é clara em relação à posse de droga para consumo próprio, é cabível a desclassificação do crime para a conduta descrita no art. 28 da Lei nº 11.343/06. V.V.P. Os funcionários da polícia merecem, nos seus relatos, a normal credibilidade dos testemunhos em geral, a não ser quando se apresente razão concreta de suspeição. Enquanto isto não ocorra e
desde que não defendam interesse próprio, mas ajam na defesa da coletividade, sua palavra tem grande valia na formação do convencimento do julgador. Assim, restando devidamente comprovadas a materialidade e a autoria do tráfico de drogas, mantém-se a condenação dos apelantes pelo crime de tráfico. (Desembargador Eduardo Brum). (Apelação Criminal 1.0040.11.003043-0/001, Relator(a): Des.(a) Delmival de Almeida Campos , 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 23/11/2012, publicação da súmula em 29/11/2012).

Por estas razões, desclassifico a imputação constante da denúncia e acatada, em parte, na sentença monocrática, para o crime previsto no art. 28 da Lei 11.343/06 e aplico, cumulativamente, as medidas dispostas nos incisos I a III do art. 28 da Lei nº 11.343/06, incumbindo ao Juízo de Execução proceder à advertência sobre os efeitos da droga, bem como determinar a forma de execução da prestação de serviços à comunidade prevista no inciso II do mencionado artigo, a qual deverá ser cumprida pelo prazo de 05 (cinco) meses. Em relação à medida de comparecimento a programa ou curso educativo, viabilizo desde já a possibilidade de sua substituição por outra medida de caráter semelhante, nos termos do art. 27 da mesma Lei, sendo que sua pertinência e sua oportunidade deverão ser objetos de prudente análise pelo Juízo de Execução.

Noutro norte, quanto à pena imposta ao apelante pelo delito de roubo, a sentença está a merecer um pequeno reparo.
Da análise da decisão, verifica-se que o il. Magistrado considerou em desfavor de Cassiano seus antecedentes e as circunstâncias do crime, "em razão do emprego de faca", estabelecendo a pena-base em 05 (cinco) anos e 06 (seis) meses de reclusão (fls. 100/101).

Presentes a agravante da reincidência e a atenuante da confissão espontânea procedeu-se à compensação de ambas.

Contudo, na terceira fase, ausentes causas de aumento ou diminuição, deve a sanção ser definitivamente concretizada em 05 (cinco) anos e 06 (seis) meses de reclusão, mantido, diante da reincidência do apelante e do quantum da pena, o regime fechado.

Por fim, deve ser reduzida a pena de multa, exageradamente estabelecida em 97 dias-multa, para 14 (quatorze) dias-multa, fixada a unidade na fração mínima, em proporcionalidade à pena privativa de liberdade estabelecida para o crime de roubo na decisão condenatória.

Ante o exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO ao recurso, nos termos deste voto. Custas na forma da lei.

DES. DIRCEU WALACE BARONI (REVISOR) - De acordo com o(a) Relator(a).

DES. ANACLETO RODRIGUES - De acordo com o(a) Relator(a).

SÚMULA: "RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO"