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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

FURTO MAJORADO – PREJUÍZO PATRIMONIAL IRRELEVANTE – ATIPICIDADE MATERIAL DO FATO – APLICAÇÃO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – ADMISSIBILIDADE NO CASO CONCRETO – OFENSA PATRIMONIAL IRRELEVANTE.

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL – FURTO MAJORADO – AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. ABSOLVIÇÃO – ESTADO DE NECESSIDADE – FURTO FAMÉLICO NÃO EVIDENCIADO. MAJORANTE DO REPOUSO NOTURNO CONFIGURADA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. O furto famélico consiste em uma pessoa, que em estado de extrema penúria, com necessidade de se alimentar ou alimentar sua família, subtrai algo para suprir a fome. 2. Comprovado nos autos que o réu subtraiu tão somente para financiar o seu vício de drogas, não há que se falar em furto famélico e possível aplicação do estado de necessidade. 3. Incide a majorante do repouso noturno quando o crime é praticado durante a madrugada, independentemente se o local se encontrava habitado ou desabitada. V.v. FURTO MAJORADO – PREJUÍZO PATRIMONIAL IRRELEVANTE – ATIPICIDADE MATERIAL DO FATO – APLICAÇÃO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – ADMISSIBILIDADE NO CASO CONCRETO – OFENSA PATRIMONIAL IRRELEVANTE. APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0443.17.000400-8/001 - COMARCA DE NANUQUE - APELANTE(S): JOEL MOREIRA DA SILVA - APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS A C Ó R D à O Vistos etc., acorda, em Turma, a 5ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, por maioria, em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO. DES. JÚLIO CÉSAR LORENS RELATOR DES. JÚLIO CÉSAR LORENS (RELATOR) V O T O 1 – RELATÓRIO Perante o Juízo da 2ª Vara Cível, Criminal e de Execuções Penais da Comarca de Nanuque/MG, o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS ofereceu denúncia contra JOEL MOREIRA DA SILVA, pela prática do delito capitulado no art. 155, § 1º, do CP, noticiando que, no dia 21 de janeiro de 2017, por volta das 03h, o denunciado, durante o repouso noturno, subtraiu um celular pertencente à vítima G.P.T. Após o trâmite processual, sobreveio a sentença de fls. 92/96, que, julgando procedente a pretensão punitiva estatal, condenou o réu como incurso nas sanções do art. 155, § 1º, do CP, aplicando-lhe as penas de 01 (um) ano, 05 (cinco) meses e 10 (dez) dias de reclusão, em regime aberto e 14 (quatorze) dias-multa. Inconformado, o denunciado interpôs recurso de apelação (fls. 111/113), requerendo o reconhecimento do furto famélico ou decote da causa de aumento do repouso noturno. Em contrarrazões de fls. 114/128, o Parquet pugnou pelo não provimento do recurso, ao que aquiesceu a douta Procuradoria-Geral de Justiça, no parecer de fls. 132/134. É o relatório. 2 – JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso. 3 – FUNDAMENTAÇÃO Inexistindo questionamentos preliminares e não vislumbrando nos autos qualquer irregularidade ou nulidade que deva ser declarada de ofício, passo à análise do mérito do recurso. Inicialmente, registre-se que a materialidade e autoria do crime de furto estão sobejamente demonstradas e sequer foram objeto de recurso pelas partes. Absolvição pelo reconhecimento do estado de necessidade: Pleiteia a defesa a absolvição do réu em face da caracterização do furto famélico (estado de necessidade), argumentando, em síntese, que embora o apelante não tenha perpetrado o delito para saciar sua fome, naquele momento, era a única forma de saciar seu vício, tendo subtraído o celular para trocá-lo por droga. Todavia, não vejo como acolher tal pleito. Como se sabe, age em estado de necessidade o agente que pratica o fato para se salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. O furto famélico, dessa forma, trata-se da ação daquele que se encontra em tamanho estado de penúria, que basicamente subtrai coisa alheia móvel para saciar sua forme ou de sua família. No caso em questão, conforme se extrai pelas provas dos autos, o agente subtraiu o aparelho celular para trocá-lo por uma pedra de crack, a fim de saciar seu vício. (F. 81 – mídia audiovisual). Ante tais considerações, não restou comprovada a alegada condição de miséria do apelante, pois, consoante já exposto, não há provas concretas de ter o réu praticado o delito movido pela fome, mas tão somente para financiar seu vício em entorpecentes. Saliente-se, ademais, que sequer existem provas nos autos de que o réu, em razão de sua dependência química, ou sob o efeito, era, ao tempo da ação, inteiramente incapaz entender o caráter ilícito de sua ação e a impossibilidade de agir de maneira diversa. Decote da majorante do repouso noturno: Melhor sorte não assiste a defesa quanto ao pedido de decote da majorante do repouso noturno. Como se sabe, a causa de aumento prevista no art. 155, § 1º, do CP, tem por objetivo punir de forma mais severa o agente que se aproveita do menor poder de vigilância da vítima sobre o seu patrimônio durante aquele período, de forma que se torna irrelevante o fato de se tratar de estabelecimento comercial ou de residência, habitada ou desabitada, bem como o fato de a vítima estar efetivamente repousando. In casu, restou suficientemente comprovada, especialmente pela prova oral colhida (f. 81 – mídia audiovisual), que a subtração do celular ocorreu enquanto a vítima dormia, aproveitando-se o réu de seu momento de repouso, oportunidade na qual não possuía nenhuma capacidade de vigilância, sendo irrelevante o fato de o apelante estar no interior do imóvel com a autorização do proprietário. Destarte, evidenciado que o réu se aproveitou do menor poder de vigilância da vítima sobre o seu patrimônio, durante aquele período, para praticar o delito, deve ser mantida a incidência da causa de aumento referente ao repouso noturno. Quanto ao mais, verifica-se que a pena foi corretamente aplicada, não merecendo qualquer reparo. 4 – DISPOSITIVO Com tais considerações, NEGO PROVIMENTO AO RECURSO. Custas na forma da lei. DES. ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO (REVISOR) Rogando vênia ao eminente Relator, reafirmo meu entendimento de que o princípio da insignificância, como instrumento corretivo da larga abrangência formal dos tipos penais, é aplicável no ordenamento jurídico brasileiro, decorrendo a possibilidade de sua incidência do arcabouço constitucional, em especial da vertente político-criminal traçada na Constituição Federal, acolhedora de um Direito Penal que intervenha na medida do necessário e que maximize as garantias, com efetivação dos princípios constantes do art. 5º da Magna Carta. Assim, perfeitamente possível o emprego da insignificância, que decorre, inclusive, do princípio da lesividade ou da ofensividade, contido implicitamente no art. 5º, XXXIX, da Lei Suprema, e no art. 13 do Código Penal. O princípio da insignificância, como é de sabença para aqueles que militam na esfera jurídico-penal, é aplicável aos chamados crimes de bagatela e, na estrutura do conceito analítico de crime, afeta a tipicidade, afastando-a, em virtude da ausência de lesividade ao bem jurídico-penalmente tutelado. Portanto, inexistente o conteúdo material revelador da tipicidade penal, o fato será atípico, e não haverá hipótese de análise dos demais requisitos do delito, quais sejam, a antijuridicidade e a culpabilidade. O exame da danosidade gerada pela conduta formal descrita no tipo ao bem jurídico protegido prescinde da análise de eventual reincidência ou maus antecedentes do autor do fato, porquanto o passado judicial não é circunstância a ser objeto de apreciação para a configuração ou não da tipicidade penal. Então, independentemente de o recorrido possuir ou não antecedentes judiciais, caso inexista a ofensividade ao interesse jurídico-penalmente tutelado, inexistirá tipicidade penal. Questiona-se: para a instauração do respectivo inquérito e o recebimento da denúncia, basta a tipicidade formal ou se impõe a existência da tipicidade material? Malgrado a existência de posições doutrinárias e jurisprudenciais contrárias, considero, a teor do disposto no art. 41 do Estatuto Processual Penal, que a denúncia ofertada pelo Ministério Público, ou a queixa-crime oferecida pelo querelante, só deve ser recebida se houver indícios veementes acerca da presença dos atributos do crime, pois o referido dispositivo penal faz constar, entre os requisitos da peça acusatória, “a descrição circunstanciada do fato criminoso”. Ora, entende-se por fato criminoso aquele que, ao menos indiciariamente, seja típico, antijurídico e culpável, acolhendo-se a posição tripartite majoritária na doutrina pátria e alienígena sobre o conceito dogmático de crime. Pensar e advogar a tese contrária constitui, além de má interpretação da lei processual penal orientada constitucionalmente, grave agressão à tese de que a ação penal somente deve ser intentada quando houver justa causa, consistente esta em uma quarta condição da ação criminal, absolutamente necessária para o começo da actio, pois “o só ajuizamento da ação penal condenatória já seria suficiente para atingir o estado de dignidade do acusado, de modo a provocar graves repercussões na órbita de seu patrimônio moral, partilhado socialmente com a comunidade em que desenvolve as suas atividades” (Afrânio Silva Jardim, Direito Processual Penal, 8ª edição, Forense, 1999, p. 54). Destarte, considero ser somente possível o recebimento da denúncia se houver indícios críveis no sentido da existência de crime, com todos os requisitos que um fato delitivo há de possuir. A ausência de tipicidade penal acarreta a inexistência de crime, ocasionando a impossibilidade de recebimento da peça acusatória. Ressalto, ainda, que descabe, no juízo de lesividade da conduta balizador da insignificância penal, análise de requisitos referentes à pessoa do agente, como os antecedentes criminais. É que a vertente pela qual trafega o princípio da insignificância é da lesão ao bem jurídico protegido pela norma penal, estando, portanto, delineado, na insignificância, o conteúdo material do tipo, referente à um critério objetivo: o grau de ofensa ao valor tutelado pelo preceito incriminador. Aqui não se trata de um desvalor ético-social da conduta, pertencente ao princípio da adequação social, mas, sim, à ofensividade do fato praticado pelo agente. Está, portanto, em parâmetros mais seguros o princípio da insignificância, o que levou, inclusive, Zaffaroni - Manual de Direito Penal Brasileiro, ed. RT – a criticar, com veemência, o supracitado princípio da adequação social, por não se encontrar devidamente delineado. Assim, o conteúdo da tipicidade material independe de análise de circunstâncias pessoais, mesmo porque, se assim fosse possível, estaríamos retornando com o antigo tipo penal do autor de Mezger, onde o caráter criminoso de uma conduta sobressaía não pelo fato praticado, mas, pelas características do seu autor. Francisco de Assis Toledo, citando Maurach, lembra que este tipo normativo do autor fundamentou períodos desastrosos na história da humanidade, sendo o seu mais famoso exemplo o nacional-socialismo alemão, criador da cultura nazista- Princípios Básicos de Direito Penal, p. 236. Explica, ainda, o citado jurista: Filiada historicamente a uma concepção do direito penal do autor, está, sem dúvida, a denominada “culpabilidade do autor” (Täterschuld), como também a teoria do “tipo de autor” (Dahm, Mezger etc). Desde que se entendeu que o direito penal devia colocar o foco sobre a pessoa do autor, com absoluta primazia, e não sobre o fato isolado, sobre o injusto típico, seria inevitável procurar-se um novo fundamento para a culpabilidade, pois também esta deixaria de ser a culpabilidade do fato isolado para erigir-se em culpabilidade de autor. Dentro desta concepção, culpável não mais será o fato do agente, mas o próprio agente pelo seu “modo de ser”, pelo seu caráter etc. (Princípios básicos de Direito Penal, ed. Saraiva, p. 237) Não há dúvida, a meu sentir, que, se vinculado o juízo de tipicidade de uma conduta aos antecedentes do réu, o que, em última análise significa dizer que o conceito de crime passa a ser definido também tendo em vista a pessoa que praticou a conduta, estaremos regredindo ao direito penal do autor em detrimento ao direito penal do fato e da culpabilidade. Esclareça-se, contudo, que a impossibilidade de considerar a reincidência como critério exclusivo para se afastar a incidência da insignificância penal que trafega por parâmetros objetivos de lesividade, não a impede de ser usada como elemento verificador da função preventiva que norteia a aplicação do indigitado princípio, porquanto se reconhece a insignificância penal, enquanto importante vetor político- criminal, devendo ser utilizada com rigor científico, atendendo-se às peculiaridades do caso concreto. Uma última indagação se impõe, agora sobre o caso concreto: a subtração configura, ou não, uma lesão insignificante ao patrimônio da vítima? A meu entender, a res furtiva (avaliada em aproximadamente em noventa reais) não representa valor patrimonial relevante a permitir a atuação do Direito Penal, em se tratando de conduta insignificante. Assim, absolutamente correto, ao meu compreender, o não processamento da ação penal, porque, realmente, é o caso de ninharia, e em se tratando de crime de bagatela, não se pode movimentar a máquina judiciária por força de ninharias, sendo mister que o fato demonstre, ao menos indiciariamente, os requisitos delitivos, hipótese inocorrente no caso em comento. Acrescente-se que o Direito Penal, em virtude da linha político-criminal traçada na Constituição da República, visa à proteção de bens jurídicos, devendo estes ser considerados como interesses relevantes e que imponham a intervenção de tal instrumento. No caso em tela, como dito, a necessidade da intervenção penal não foi demonstrada. Feita essa ressalva, rogando vênia ao culto Relator, DOU PROVIMENTO AO RECURSO PARA ABSOLVER O ACUSADO, COM FULCRO NO ART. 386, III, DO CPP. Deixo de determinar a expedição do competente alvará de soltura, eis que conferido o direito de o increpado recorrer em liberdade (f. 96). Cumpra-se com o disposto no art. 201, §§ 2º e 3º, do CPP. Sem custas. É como voto. DES. EDUARDO MACHADO - De acordo com o(a) Relator(a). SÚMULA: "POR MAIORIA, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO"

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