DIREITO
CONSTITUCIONAL – DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Proteção de dados e
inviolabilidade de domicílio
A Segunda Turma iniciou julgamento de
habeas corpus em que se discute a nulidade de processo penal em que, no
âmbito de cumprimento de medida de busca e apreensão, autoridade policial teve acesso,
sem autorização judicial, ao aparelho celular do paciente, bem como às conversas
havidas no aplicativo Whatsapp.
No caso, agentes policiais
apreenderem o aparelho celular do paciente e procederem à investigação, no
aplicativo WhatsApp, de conversas
cujo teor indicaria traficância. Em seguida, os agentes ingressaram no domicílio
do paciente onde encontraram drogas e arma, o que ensejou o ajuizamento de ação
penal, cuja condenação em primeira instância foi mantida pelo tribunal de
justiça e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O ministro Gilmar Mendes (relator)
concedeu a ordem para anular as provas obtidas mediante o acesso
indevido ao aplicativo WhatsApp e à
residência do paciente. Constatada a derivação de todas as demais provas,
declarou nulo o processo e determinou o trancamento da ação e a absolvição do
paciente.
O relator asseverou ser inviolável o
sigilo das comunicações telefônicas e de dados, salvo por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal
ou instrução processual penal [Constituição Federal (CF), art. 5º, XII] (1). A
inviolabilidade da vida privada e da intimidade é afirmada pelo art. 5º, X, da
Constituição Federal (2).
Sublinhou que, ao adotar interpretação
mais estrita da norma contida no art. 5º, XII, da CF, a doutrina entendia não
se aplicar a inviolabilidade das comunicações aos dados registrados. Partia-se
da compreensão de que os dados em si não eram objeto de proteção, mas somente
as comunicações realizadas.
Essa orientação foi incorporada pela
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). No julgamento do HC 91.867, destacou-se
a diferença entre comunicação
telefônica e registros
telefônicos, os quais receberiam proteção jurídica distinta.
Naquela oportunidade, foi assentada a
impossibilidade de interpretar-se a cláusula do art. 5º, XII, da CF no sentido
de proteção aos dados como registro, depósito registral, porquanto a proteção
constitucional seria da comunicação, e não dos dados.
O relator afirmou que a modificação das circunstâncias fáticas e
jurídicas, a promulgação de leis
posteriores e o significativo desenvolvimento
das tecnologias da comunicação, do tráfego de dados e dos aparelhos smartphones levam,
contudo, nos dias atuais, a solução distinta, em um típico caso de mutação constitucional.
No âmbito infraconstitucional, as
normas dos arts. 3º, II e III; 7º, I, II, III e VII; 10 e 11 da Lei 12.965/2014
(3) – o marco civil da internet – estabelecem diversas proteções à privacidade,
aos dados pessoais, à vida privada, ao fluxo de comunicações e às comunicações
privadas dos usuários da internet.
A norma do art. 7º, III, da referida
lei é elucidativa ao prever a inviolabilidade e o sigilo das comunicações privadas armazenadas (dados
armazenados), “salvo por ordem
judicial”.
A legislação infraconstitucional
avançou, portanto, para possibilitar a proteção dos dados armazenados em
comunicações privadas, os quais somente podem ser acessados mediante prévia
decisão judicial – matéria submetida à reserva de jurisdição.
O avanço normativo nesse importante
tema da proteção do direito à intimidade e à vida privada deve ser considerado
na interpretação do alcance das normas do art. 5º, X e XII, da CF.
Tão importante quanto a alteração do contexto jurídico é a impactante
transformação das circunstâncias fáticas, que trazem novas luzes ao tema. Nesse
sentido, houve um incrível desenvolvimento dos mecanismos de comunicação e
armazenamento de dados pessoais em smartphones e telefones celulares
na última década.
Nos dias atuais, esses aparelhos são
capazes de registrar as mais variadas informações sobre seus usuários. Os
celulares são a principal forma de acesso dos brasileiros e cidadãos do País à internet. Esse motivo, por si
só, já seria suficiente para concluir pela incidência das normas sobre proteção
dos dados, dos fluxos de dados e das demais informações contidas nesses
dispositivos.
Ademais, o conceito de domicílio
abrange todo lugar privativo, ocupado por alguém, com direito próprio e de
maneira exclusiva, mesmo sem caráter definitivo ou habitual, tratando-se de
noção mais ampla do que aquela vigente no direito civil.
Nesse sentido, o acesso direto a
aparelhos telefônicos e à residência de suspeitos, sem autorização judicial,
fora das hipóteses de flagrante e sem o estabelecimento de procedimentos bem
delimitados que garantam a observância dos direitos fundamentais, também
conflita com o direito fundamental à não autoincriminação.
É por isso que essas medidas devem
ser submetidas à prévia decisão judicial, como garantia procedimental in
concreto através da qual sejam analisados e registrados,
especificamente, os fundamentos que possam afastar os direitos fundamentais
envolvidos. Ou seja, a existência de prévia decisão judicial é capaz de
demonstrar a necessidade, adequação e proporcionalidade da pretensão dos órgãos
de segurança ao acesso aos dados, às informações e à residência dos suspeitos.
Permite, ainda, o controle desses fundamentos.
Em seguida, o julgamento foi suspenso
em virtude do pedido de vista da ministra Cármen Lúcia.
(1) CF/1988: “Art. 5º Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: (...) XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no
último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer
para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”
(2) CF/1988: “Art. 5º (...) X – são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de
sua violação;”
(3) Lei 12.965/2014: “Art. 3º A
disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: (...) II –
proteção da privacidade; III – proteção dos dados pessoais, na forma da lei;
(...) Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao
usuário são assegurados os seguintes direitos: I – inviolabilidade da
intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação; II – inviolabilidade e sigilo do fluxo de
suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; III
– inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por
ordem judicial; (...) VII – não fornecimento a terceiros de seus dados
pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet,
salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses
previstas em lei; (...) Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de
conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de
dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à
preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes
direta ou indiretamente envolvidas. (...) Art. 11. Em qualquer operação de
coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou
de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que
pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser
obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à
privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas
e dos registros.”
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